Os Mitos Japoneses

Os Mitos Japoneses: Um guia para os deuses, heróis e espíritos – Joshua Frydman

Tradução: Ceasar Souza – Editora Vozes

Ano de Lançamento: 2022 – Minha Edição: 2024 – 249 páginas


A partir dos anos 90, com animes e vídeo games, a cultura japonesa se tornou uma das mais consumida em todo o planeta. Todos que cresceram a partir dessa década tem uma intimidade mínima com o que se passa na terra do sol nascente. Não é preciso ser muito nerd para já ter ouvir falado em um Youkai, no Kami-Sama, no Emma-daioh, em “senin” ou “sampai”. Isso é resultado de uma capacidade muito peculiar de adaptação cultural naquele país, conforme nos demonstra esta obra do americano Joshua Frydman, professor de literatura japonesa em Oklahoma.

Enquanto a mitologia Grega, Romana, Celta ou Nórdica são testemunhos do passado, no caso da japonesa, ela ainda faz parte da religião praticada naquele país, é algo realmente sui generis – especialmente tratando-se de uma nação central do capitalismo. O que só é capaz, novamente, a essa capacidade de adaptação; na contemporaneidade, ao consumo. Os japoneses conseguem acreditar e comercializar seus valores religiosos ao mesmo tempo, de forma espetacular – não a fé, importante pontuar.

Séries de videogames como Shin Megami Tensei e Youkai Watch, ou mangás e animes como Shaman King e Yu Yu Hakusho tem como base dramas e desafios que partem da mitologia japonesa – “e tá tudo bem“, como já diria o famigerado jargão. Na perspectiva deles, não há diminuição da importância desses seres divinos que são representados na cultura de massa com relação à crença neles. A bola da vez é a adaptação dos valores religiosos com empreitadas multimídias, mas essa é uma característica fundamental da religiosidade japonesa, que é o resultado da afluência de valores diversos da Ásia. Em especial, a chegada do Budismo, do Confucionismo e do Taoísmo ao arquipélago.

Há, nesse sentido também um movimento de mão dupla; elementos digitais ou do consumo são incorporados à mitologia japonesa. Nos últimos anos, passaram a existir “kamis” – como são nomeados os espíritos e entidades sobrenaturais japonesas, que podem ser animais, pessoas, plantas ou mesmo locais geográficos – oriundos de programas de computador. Em 1986 foi lançado Digital Devil Story, um romance de terror que se tornou muito influente ao contar a estória de um estudante que consegue invocar demônios digitais para se vingar de colegas de sala. Este livro originou toda a série de games Shin Megami Tensei. Apesar de todo contexto digital, um dos personagens é uma espécie de reencarnação de Inazami, uma das mais altas e antigas divindades do xintoísmo.

Curiosamente, os documentos escritos mais antigos no Japão datam apenas do século VIII d.C. – em contrapartida, há registros escritos na China e na Índia no século XIV a.C., mais de dois mil anos antes. Essas obras – o Kojiki e o Nihon Shoki – servem de base para toda a mitologia japonesa, e registrariam a vida dos primeiros Imperadores do país, que seriam descendentes diretos dos deuses que criaram o arquipélago, os Amatsukami. Sem entrar em detalhes, conta-se lá a história desde a criação do universo, passando pelos primeiros monarcas japoneses, até as primeiras décadas dos anos 700. Entretanto, os registros são puramente míticos, o imperador mais antigo capaz de ser verificado é apenas o 29º nessas crônicas, que reinou no final do século VI.

Até mesmo a menção ao Japão em registros escritos de outros países asiáticos, o autor demonstra, é algo muito raro. Nesse sentido, a construção e o reconhecimento de identidade japonesa é extremamente recente e feito através dessa afluência externa às ilhas. O budismo, originário da Índia, por exemplo, chegou antes no arquipélago da confecção destes dois textos; e são eles que fundam o Xintoísmo – que seria a religião “nativa” do Japão, na falta de melhor termo.

O Kojki ou Furukotofumi, o registro escrito mais antigo do Japão. Datado, provavelmente, de ano de 712 dc. Em comparação, os registros escritos mais antigos da Índia ou China datam de 250 ac (talvez 500 ac) e 1250 ac (ou 1050 ac), respectivamente. O documento escrito mais antigo do mundo, também vindo da Ásia, na Mesopotâmia, tem com origem entre os anos de 3500 e 2900 ac.

É um choque saber disso tudo. Há uma aparência de cultura milenar, altamente conservacionista, que passa os costumes e tradições adiantes; uma capacidade ímpar de se manter antiga… mas não é exatamente assim. O que o estudo da mitologia japonesa neste livro demonstra é que ela é o resultado de seguidas adaptações e reformulações ao longo da história. O único período em que houve uma tentativa de estabelecer cânones oficiais para a religião e cultura nipônicas foi a partir da Era Meiji até a derrota na II Guerra Mundial – movimento que ficou conhecido como Xintoísmo Estatal. O objetivo era resistir ao avanço dos europeus no oriente durante o auge do imperialismo, adotando, justamente, práticas ocidentais, mas isso é conversa para outro momento.

O que pautou o desenvolvimento cultural e religioso japonês foi o sincretismo – inclusive na adoção dessa ocidentalização do xintoísmo, se pensarmos bem. A cada momento de sua história e da afluência de outras idéias e culturas estrangeiras, os mitos se adaptam. Deidades tradicionais japonesas frequentemente são releituras de figuras oriundas de civilizações vizinhas. O caso de Susanoo, a segunda divindade mais importante do Japão, é emblemático. Ninguém consegue estabelecer o que ele simboliza exatamente: é deus dos Mares e das tempestades, mas também dos campos e da agricultura; um herói que derrotou monstros; ainda associado à violência mas ao mesmo tempo à cura. Essas múltiplas faces poderiam ser explicadas através das interferências de outras religiões no culto a ele, notadamente Gozu Tennō, que foi associado a Susanoo, mas pode ser originário de uma divindade muito específica de um templo budista na fronteira entre Índia e Nepal.

Gravura do Século XIX de Susanoo, segundo deus mais importante do Xintoísmo, derrotando a serpente Yamata No Orochi. No canto superior esquerdo, ele está identificado como “Gozu Tennō“, outra divindade, budista, e que pode ter origem indiana.

O livro oscila um pouco entre contar a História da Mitologia Japonesa, no sentido de explicar suas variações ao longo do tempo, e suas conexões com a História do Japão e da região; e em outros pontos em contar a estória da Mitologia Japonesa, qual é deus do quê, quem é filho de quem, quem originou tal mito ou onde fica o templo de quem. A obra é completa por abordar esses dois aspectos – acho que precisava, ainda assim, de mais contexto histórico – entretanto, como texto oscila um pouco nesses casos: as vezes parece que você está lendo o Silmarillion.

Não ficam bem divididos a qual dessas tarefas pertence cada linha da raciocínio, faltou um pouco de trabalho editorial para organizar melhor a empreitada. Há uns boxes com resumos de alguns conceitos, que, pessoalmente, não me ajudaram muito em compreender as coisas – peguei um exemplo ou outro em que havia alguma informação nesta caixa de destaque que não estava presente no corpo do texto, deixando, assim, mais dúvidas. Suspeito que foram adicionadas posteriormente após verificarem que estava difícil de acompanhar as coisas.

Da mesma forma, especialmente para quem é Otaku ou simpatizante, apesar das sinopses e das resenhas – inclusive a minha – as correspondências dos mitos com os mangás e games são bastante pontuais. Vai haver alguma decepção. Muita coisa você vai acabar associando por conta própria, o autor até cita alguns exemplos, mas eles funcionam mais como ilustrações dessa adaptabilidade da mitologia japonesa que vai desde a pré-história até o Nintendo Switch. Você vai entender porque isso ocorre – o que é mais importante – mas não exatamente as ocorrências em si.

Ainda assim é uma leitura agradável – e ricamente ilustrada – que joga luz a uma das coisas mais intrigantes da contemporaneidade: a convivência da cultura da japonesa, com certos aspectos tão arcaicos, comparados à Antiguidade Ocidental, ao lado da tecnologia e o consumo dos séculos XX e XXI. Apenas alerto que você pode se decepcionar; ou de que o Japão está longe de ser tão antigo assim, ou de que são parcas as referências ao universo Otaku, ou, simplesmente, de não conseguir acompanhar a todas as informações.

Muito Bom (4/5)

Dentro os limites de uma edição quase de bolso, é uma obra muito completa sobre o tema. Entretanto, o texto oscila entre sobre ser uma descrição da mitologia japonesa e uma história da mitologia japonesa como fenômeno hitórico – e não é muito fácil de acompanhar.

Demais etnias japonesas ignoradas: o livro acaba não pontuando de forma clara, mas ele é um estudo e uma apresentação exclusiva dos mitos japoneses referente à cultura Yamato. Ela é etnia dominante que conquistou os demais povos que habitaram o arquipélago a partir da planície de Nara (veja abaixo) e gradualmente assimilou as demais culturas que habitavam por lá ao longo dos séculos.

Povos com cultura e mitologia muito ricas e particulares, que sobreviveram até o início do século XX de forma preponderante em suas regiões, e ainda são vivas, foram totalmente ignorados – ou sequer citados – nesta obra. São os casos, por exemplo, da etnia Ainu, que originalmente habitava do norte da ilha de Honshu até a península de Kamchatka, na Rússia, e ficaram mais concentrados na ilha de Hokkaido; e dos Ryukyuan, nativos das ilhas de mesmo nome, mais ao sul do Japão – e no Brasil normalmente associado aos habitantes de Okinawa ou como povo Uchinaanchu.

Registro dos Ainu em 1904. A partir da anexação da ilha de Hokkaido ao Império Japonês no final do Século XIX, a população foi assimilada de forma forçada à cultura Yamato. Houve uma perseguição às práticas e língua Ainu de forma sistemática – a partir de uma lei específica em 1899 para “proteger” essa população. Apenas em 1997 essa legislação foi revista e só em 2019 os Ainu foram reconhecidos como uma cultura independente dentro do Japão. O livro não defende nada disso, mas eles são sequer citados.

“Preservação” e Patrimônio: uma das coisas mais chocantes que descobri sobre a relação dos japoneses com o passado é um pouco prévia a este livro, mas se encaixa perfeitamente. Muitos dos templos e edificações do país que aparentam serem sobreviventes de tempos extremamente remotos e imemoriais foram, na realidade, construídos a partir da Era Meiji e vários no próprio século XX, como parte de uma política estatal de construção de um passado comum à todo o arquipélago. Em Nara, a primeira capital permanente do Japão, há vários sítios arqueológicos remetendo aos primórdios da história do país, tendo como “estabelecidos” nos séculos VII e VIII, quando a monarquia se estabeleceu por lá.

Entretanto, isso quer dizer que nestes locais foram construídos templos e espaços de adoração aos deuses nesse período, mas não são os mesmos prédios. Há uma tradição xintoísta chamada shikinen zōtai, que prega reconstrução periódica dos templos como forma de manter viva a adoração e o prestígio dos deuses homenageados; o mais antigo xintoísta, Kasuga-taisha, foi reconstruído em 2016; enquanto dos budistas, como o Yakushi-ji, datam de 1976 a 1995 – com exceção de uma torre preservada desde 730. A primeira residência imperial, o Palácio Heijō, foi construído entre 1998 e 2010.

Isso é mantido mesmo para os templos mais importantes e cultuados, como o de Izumo, que guardaria a entrada para o mundo dos mortos, é reconstruído a cada 60 anos; a ultima data de 2008; ou o Ise, dedicado a Amaterasu, construído em 2013. Supostamente seguindo as mesmas especificações da Era Kofun (entre séculos IV e VI); entretanto, dificilmente isso é verdadeiro. Assim como em todas as culturas humanas, as representações tendem a carregar consigo impressões de seu tempo; por exemplo, quadros representando os deuses ou mitos gregos do renascimento não são retratos de como era o mundo no século X AC, mas como o século XVI DC imaginava que a Antiguidade havia sido. Assim como as representações dos deuses e espíritos japoneses que existem em todo o livro são como os artistas cada período imaginavam esses kami.

O Trono da Monarquia dentro do Salão de Estado do Palácio Heijô, em Nara, a primeira sede da monarquia japonesa, utilizada durante o século VIII DC. Este prédio da foto foi inaugurado em 2010, baseado em ilustrações do Palácio Heinan, em Quioto, datadas do século XII DC. Os desenhos do zodíaco chinês foram feitos por renomados pintores baseando em ilustrações selecionadas do período original, porque acredita-se que o modelo de administração era baseado no equivalente praticado na China naquela época. O tamanho da estrutura foi estimado em escavações arqueológicas de outro palácio próximo, que funcionou como sede administrativa durante 4 anos, entre 740 e 744 DC, e eles provavelmente seriam parecidos. Qualquer estudioso do patrimônio precisaria de massagem cardíaca após ler este parágrafo.

Por mais nobre que sejam as intenções e respeitando a fé envolvida, essas reconstruções – e não restaurações – são feitas pelas pessoas da sua época. Uma descoberta arqueológica pode tentar deixar algo mais fidedigno, ou uma política estatal, como foi o caso da burocratização do Xintoísmo do Japão até a II Guerra, deliberadamente intervir para deixar mais grandioso ou luxuoso e seguidamente ir mudando esses prédios.

Uma discussão e tanto para o campo dos estudos de Memória e Patrimônio.


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Publicado por Lucas Palma

Paulistano, desde que me lembro por gente fascinado pelas possibilidades do futuro, em games, filmes e seriados, herança paterna e materna. Para surpresa geral, ao final da juventude descobri fascínio também justamente pelo oposto, me graduando e mestrando em História, pela Universidade Federal de São Paulo. Sou autor de Palavras de Revolução e Guerra: Discursos da Imprensa Paulista em 1932.

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