Novelas, espelho mágico da vida

Novelas, espelho mágico da vida: quando a realidade se confunde com o espetáculo – Soleni Biscouto Fressato

Ano de Lançamento: 2024 – Minha Edição: 2024 – 207 páginas


Há pouco mais de dez anos, antes da chegada dos streamings, a pergunta sobre “quais séries você assiste?” era algo de um nicho muito específico – de jovens adultos que navegavam em sites de procedência duvidosa baixando arquivos de Real Player. O grosso da população brasileira, de todas as idades, durante as últimas décadas, teve como principal entretenimento o consumo de telenovelas; em especial as da Rede Globo.

Concordando com essa afirmação, a socióloga Soleni Fressato decidiu mergulhar a fundo no papel que as novelas da Vênus platinada – com certeza desperto memórias antigas ao citar esse apelido – tiveram na sociedade brasileira; em especial articulando-se com os conceitos de Indústria Cultural e com a psicanálise.

Após uma breve contextualização da produção das novelas, na TV brasileira e na Globo, a autora já parte para uma muito densa recapitulação dos conceitos de Adorno e Horkheimer. De forma muito didática, ela vai passando pela evolução do pensamento desses estudiosos, e de como eles chegaram às conclusões mais importantes de sua obra. Isto é, como, a partir do século XX, a “cultura de massas” não só busca agradar de forma massificada a população, como também determina o que a própria população passará a gostar e buscar no entretenimento e na arte.

Esse mecanismo de agradar ao mesmo tempo em que formata o interesse, assumido pela Indústria Cultural, faz com que suas produções e manifestações cada vez sejam mais vulgares e banais. A situação se tornou cada vez mais acentuada com o avançar dos anos e os pensamentos de Guy Debord, mais concentrados em sua obra A Sociedade do Espetáculo, de 1967, incorporam novos elementos, de inspiração marxista, nessa questão. O francês demonstra como o fetichismo da mercadoria, através da cultura de massa, chega a níveis ainda mais elevados. Não só as mercadorias deixam de ser associadas ao trabalho empregado nelas, como são desassociadas de seu próprio valor de uso. As necessidades humanas começaram a ser cada vez mais desvinculadas da realidade e associadas às imagens e representações criadas pela indústria.

As implicações sobre isso são inúmeras; e a cada página Soleni se aprofunda cada vez mais; especialmente quando ela apresenta outras reflexões advindas da psicanálise. As produções dessa indústria passam a nos afetar em níveis cada vez mais íntimos, prejudicando a nossa individualidade; no sentido que opera em nós uma pseudo-identificação – ao invés de buscarmos identificação com imagens e pessoas reais, fazemos isso em representações e personagens ficcionais criados por “fábricas” de arte cada vez mais massificadas. Assim como um “mais-gozar” coletivo é proporcionado aos espectadores com produções culturais capazes de mais intensidade, como filmes cada vez mais espetaculares (e até mesmo vídeo games, por exemplo, acredito que se encaixariam) e cada vez mais enquadrados em um sistema de reprodução que busca despertar prazer em detrimento da crítica.

Fressato volta um pouco mais ao chão com os filósofos Walter Benjamin e Siegfried Kracauer, explorando mais de teoria da arte. Explorando a dialética que permite que dentro da Indústria da Arte haja dissonâncias de produções que busquem mais questionamentos do sistema que sua reprodução; e de como o cinema é – era, à época do pensador alemão, no pós-guerra – a principal forma de expressão de todas essas reflexões. Nesse ponto, Soleni volta a assumir a liderança do texto ao apontar que, no Brasil, esse papel, em todos os seus aspectos, foi realizado pelas novelas.

E, na prática, o que importa do texto para por aqui – um pouco antes da metade do livro. Daqui em diante, a autora separa algumas representações mais corriqueiras das tramas das novelas para discutir cada uma: o amor (romântico), a família, a figura dos coronéis, e o trabalho. Se a própria seleção desses eixos carece de alguma costura um pouco melhor, a discussão também é um irregular. Nos dois primeiros itens, um mergulho profundo em subjetividade e psicanálise; e, nos outros dois, em materialidade e marxismo (embora também haja uma articulação disso tudo em cada um dos capítulos).

É uma questão de metodologia das Ciências Sociais que a mim, particularmente com a formação de historiador, causa estranhamento, mas todas reflexões são a-históricas, isto é, desprovidas de um contexto histórico. Por exemplo, no capítulo sobre o amor, somos apresentados a uma interessante introdução de como surgiram determinados pilares da narrativa romântica nos mitos gregos; do mito de andrógino (o que cria a noção de almas gêmeas) e de Eros e Psiquê (no qual teria se criado a associação do amor do sofrimento). Interessante, mas das obra de Platão até as de Ivani Ribeiro – autora de A Viagem e Mulheres de Areia, senti muita falta de citações às obras dela aqui! – tem uns bons milhares de anos.

Entendo que essa é uma origem e podemos traçar paralelos; mas para a análise das novelas é problemática. Os folhetins dos periódicos brasileiros – citados pela própria Soleni Fressato na introdução – provavelmente foram uma influência muito maior na teledramaturgia que os filósofos gregos. É mais fácil imaginar que a Glória Perez leu Machado de Assis e José de Alencar como inspiração do que O Banquete ou A República – embora a escritora de O Clone tenha feito sua graduação em história na UFRJ.

Novamente, é uma questão de metodologia. Para a sociologia é normal buscar esses conceitos e ir aplicando em diferentes épocas e lugares; como historiador, não acho o mais interessante dos exercícios. Entretanto o central é que essa análise não mostra como e nem tornam as novelas relevantes ou ímpares como documentos para entender a sociedade brasileira, não há espaço pra suas especificidades. Saber se a novela das 8 aplica tão bem elementos da obra de Shakespeare, ou de um poema romano, pode atestar uma série de coisas, talvez a qualidade e a estética dessas peças, mas diz muito pouco sobre o Brasil da virada do milênio – no máximo que conhecemos, indiretamente, esses conceitos.

Nos pontos referentes à política (aqui, no recorte do coronelismo) e ao trabalho, as características genuínas das novelas ficam mais evidentes; entretanto, a autora não se aprofunda em nenhum exemplo. O texto continua ainda com o mesmo procedimento: trazendo referências teóricas sobre o assunto e, em seguida, pincelando alguns exemplos; mas que poderiam ser esses citados ou quaisquer outros. Isso porque também não há recorte temporal para as obras televisivas analisadas. Podemos perceber um privilégio para as que foram exibidas na década de 2010, mas sem nada em específico do período – pelo que entendi foi a época a qual a autora conseguiu mais se dedicar a assisti-las com olhar analítico.

A primeira versão de Roque Santeiro, censurada em 1975, era uma readaptação da peça O Berço do Herói, de Dias Gomes, na qual um pracinha da FEB é mal-entendido como um mártir em sua cidade natal após desaparecer na Guerra, mas retorna, vivo, ao município – que já até levava seu nome – e também foi proibida.

São raríssimas as menções a datas ou governos nos quais as novelas foram produzidas. Em alguns momentos o texto apresenta alguma reflexão com espaço, tempo e materialidade. Tais como as observações sobre o personagem do Sinhozinho Malta, em Roque Santeiro, que deveria ser entendido como vilão mas se tornou muito carismático; e da convivência do núcleo que denunciava o trabalho escravo em Do outro Lado do Paraíso ao mesmo que havia uma legislação afrouxando essa questão – uma obra de 1985 e outra de 2017 – mas que, no formato do texto, funcionam apenas como ilustrações de reflexões quase que externas.

Nesse sentido, é um pouco do tom do livro: uma leitura compartimentada. Temos de um lado reflexões teóricas super aprofundadas de arte, cultura, indústria e sociedade – além de algumas coisas mais exóticas de psicanálise; o que por si só não seria um problema, mas acho que às vezes pesa-se um pouco a barra no “psicologismo”; de tentar explicar a história da humanidade através de características psicológicas (e não materiais) – e, de outro, exemplos pinçados de telenovelas aleatoriamente para embasar as primeiras.

Tenho a impressão de ser um texto na defensiva; buscando a todo momento demonstrar que as novelas seriam um objeto legítimo de estudo e com muito a dizer sobre a sociedade brasileira. Bandeira com a qual concordo integralmente, e nesse ponto a autora consegue demonstrar plenamente. Faltou, por sua vez, conseguir aplicar de forma mais bem delimitada e contextualizada a análise nas obras televisivas, as quais funcionaram apenas como ilustrações por aqui. Nesse sentido, o texto pode ser uma importante obra de referência para os próximos pesquisadores – e acredito que seja um texto recomendável apenas a eles – que desejem mergulhar nesse fantástico mundo da teledramaturgia brasileira como fonte histórica.

Bom (3/5)

A parte teórica é excepcional, a autora é muito didática e convincente ao demonstrar a relevância do estudo das novelas como objeto para entender a sociedade brasileira. Entretanto, o livro não tem recortes bem delimitados, sejam temporais ou temáticos – e os exemplos funcionam apenas como ilustrações.

Sinhozinho Malta: quando a novela Roque Santeiro foi finalmente liberada pela censura para produção e exibição, em 1985, uma das preocupações dos autores era com relação à figura de Chico Malta. Maior latifundiário da cidade e principal antagonista da trama, ele liderava o complô para manter sob segredo a verdadeira história de Roque – que incluiria inclusive o assassinato do próprio. Imaginava-se que o sinhozinho, que tinha uma figura análoga à dos coronéis, fosse associado à ditadura e ao autoritarismo e assim se mostrasse muito impopular.

Ao decorrer da novela, com muito do talento e do carisma da Lima Duarte, o público passou a se identificar mais com o Sinhozinho Malta – enérgico e apaixonado pela “viúva” porcina – do que com o próprio Roque Santeiro (vivido por José Wilker), mais introspectivo e passivo. A popularidade do fazendeiro levou à mudança do final da obra, com um desfecho feliz para o casal (e baseado no final de Casablanca).

A interpretação de Soleni Fressato é de que a popularidade do personagem é uma amostra do enraizamento da figura “coronel” no imaginário popular e uma relativa aceitação da sociedade brasileira ao autoritarismo – mesmo com o regime militar em franca decadência. Eu acho que pode ser isso, faz parte da análise. Entretanto, pela atuação do intérprete e todo o desenho da trama, o personagem saiu de forma mais cômica e carismática – o objetivo não seria transformá-lo em grande vilão; talvez fosse, ao contrário, suavizar a figura do coronel. Aliás, a Roque Santeiro, apesar de liberada, precisou pisar em ovos em seus primeiros capítulos, ainda vigiada pela censura, e esse produto final de Malta como personagem cômico pode ter sido parte da negociação.

Discurso de Bergenon – Em comemoração aos 200 anos da Revolução Francesa, a Rede Globo produziu um de seus maiores sucessos na faixa das sete: Que Rei sou eu?, em 1989. A novela contava a história do fictício Avilan, um reino que acabara de perder seu rei e cai em uma crise sucessória, entre a despreparada rainha e o filho bastardo.

Ela fez parte de uma espécie de trilogia política das novelas; Vale Tudo, Que Rei sou Eu? e O Salvador da Pátria, exibidas entre 1988 e 1989. Na efervescência da promulgação da Constituição Cidadã e das primeiras eleições livres em 25 anos, era o grande tema a ser discutido. A influência da Globo na política nacional esteve talvez em seu auge; para o jornalista Paulo Henrique Amorim, Roberto Marinho mandava mais que José Sarney, conforme dizia em seu livro O Quarto Poder.

A mensagem que a emissora e os autores queriam passar com que Que Rei sou Eu? é tema de várias análises, o canal Meteoro Brasil fez um mini-documentário interessante sobre o tema; mas um dos pontos pacíficos é o desejo de influenciar nas eleições de 1989 a favor de Fernando Collor – postura deliberada da Globo. Um ponto que Soleni Fressato levanta logo no início do livro é o enigmático discurso de Begernon – o bem intencionado ministro da fazenda do reino.

No último capítulo da novela, exibido em 15/09/89, exatamente dois meses antes do primeiro turno das eleições, e interpretado pelo mais poderoso diretor da Globo, Daniel Filho, o nobre discursa para uma multidão armada e levando tochas no reino. Ele ressalta a importância das eleições, e pede para a população “ter cuidado com os maus políticos” e para ter “olho no voto”. Ao mencionar a palavra “voto”, por duas vezes, ele fazia um inexplicável gesto com “V”, invertido, com os dedos, conforme a imagem acima. O mesmo gesto era empreendido pela campanha de Collor, ao fazer alusão aos dois “L” de seu sobrenome.

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Publicado por Lucas Palma

Paulistano, desde que me lembro por gente fascinado pelas possibilidades do futuro, em games, filmes e seriados, herança paterna e materna. Para surpresa geral, ao final da juventude descobri fascínio também justamente pelo oposto, me graduando e mestrando em História, pela Universidade Federal de São Paulo. Sou autor de Palavras de Revolução e Guerra: Discursos da Imprensa Paulista em 1932.

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