Muito além do grid – Renaldo Leme e Alfredo Bokel (org.)
Ano de Lançamento: 2024 – Minha Edição: 2024 – 429 páginas
Algumas pessoas são capazes de ter tanta relevância e exposição em seu trabalho que conseguem se tornar sinônimos da sua profissão, no caso da cobertura da Fórmula 1 no Brasil, Reginaldo Leme, jornalista que cobre a categoria na desde os anos 70, é um exemplo disso. Originalmente pelo jornal e rádio, nos anos 80 estabeleceu-se como principal comentarista do esporte na TV Aberta – e ocupa essa posição até hoje [2025].
Neste livro de memórias, o jornalista recompõe essa trajetória tão famosa e conhecida que se mistura com a história da Fórmula 1 no Brasil. O que não necessariamente é bom.
A própria estrutura do livro denuncia talvez seu principal problema. Ao invés de organizar os capítulos majoritariamente através dos principais episódios que o jornalista viveu em sua trajetória profissional; eles são, em sua maioria, divididos através dos principais pilotos brasileiros que passaram pela categoria. Temos um capítulo para cada título dos campeões (Fittipaldi, Piquet e Senna), depois um para Rubinho e outro para Massa. Claro, há espaço para episódios pessoais, mas são intercalados e posicionados dentro dessa cronologia externa à carreira do autor.
E o grosso do que compõe a escrita é de pequenas anedotas que o jornalista se lembra dessas temporadas e personalidades. Caso você tenha acompanhando as transmissões este tempo todo, já conhece a maioria, quase todas histórias públicas contada por ele, mais de uma vez. Nesse sentido, é tudo muito chapa-branca. Se era algo que poderia ser contado numa transmissão em TV aberta, ainda mais na Globo, com certeza se trata de algo relativamente pouco polêmico.
Não só pelo teor, mas pelo tom como as coisas são contadas. Para exemplificar, pego um trecho sobre uma “barriga” – uma notícia sem confirmação – cometida pelo próprio, em 1974. Na primeira etapa do ano, na Argentina, Emerson Fittipaldi largou em terceiro mas logo acabou encostando fora da pista, como se fosse abandonar. Conseguiu manter o carro ligado, voltou à corrida, todavia, apenas para terminar em 11º. Saindo da prova, o piloto “sugeriu“ para o jornalista que poderia ter sido sabotado. Reginaldo acabou acreditando na palavra e publicou isso no Estado de S. Paulo. O que gerou um mal-estar e Leme foi questionado logo no GP seguinte, no Brasil, pela Ferrari, que entendera a história como uma indireta de Fittipaldi. Quarenta anos depois, Emerson teria confidenciado, “rindo“, que, na realidade, ele mesmo, por acidente, teria desligado o carro para ligar na sequência.
Conforme é narrado no livro, parece que foi tudo uma grande confusão, que poderia ser até uma episódio de A Grande Família. O autor até admite que foi um erro; mas são muitas camadas ignoradas nessa situação. O texto que ele publicou, na época mas citado neste livro, continha detalhes do que havia sido quebrado no carro, e uma declaração do chefe da McLaren, equipe do Emerson. Tudo isso também fora uma barriga? Da mesma forma, ignora que Emerson inventou aquilo tudo, deixou rolar, e foi até o final com essa versão falsa. Não que eu quisesse “ver sangue”, mas o tom do livro é sempre esse em todas as polêmicas; de que tudo nunca passou de um mal entendido entre amigos.

Reginaldo, na narrativa do livro, parece ter sido mais um relações-públicas do que um jornalista. Os principais episódios profissionais de sua carreira, de acordo com o livro, ilustram essa percepção. O “Singapuragate“, no qual ele revelou para o mundo a armação feita por Flávio Briatore e Pat Symonds na Renault para que Fernando Alonso ganhasse o GP de Singapura de 2008, as custas da batida proposital de Nelsinho Piquet. Conforme o próprio narra, não houve trabalho jornalístico algum: ele foi procurado pelo Nelson pai, que decidiu ele apresentar a história antes que a FIA – que, recentemente, descobrimos já saber do ocorrido desde então – expusesse os eventos, ou a própria Renault se antevisse e soltasse sua versão dos eventos.
Da mesma forma, o outro principal ponto de sua carreira, no caso, negativo, foi a briga pública com Ayrton Senna, ao final de 1990. Foram uma série de desgastes entre Reginaldo e o piloto, em vários episódios, envolvendo familiares, patrocinadores e outros jornalistas. A gota d’água teria sido um comentário que o autor teria feito durante uma discussão, em um jantar, sobre a sexualidade de Senna; no qual estavam presentes amigos em comum. Depois disso se iniciou um embargo do piloto com Leme, que, por muito pouco não resultou na demissão do comentarista e seu afastamento do trabalho com a Fórmula 1; pois estava afetando decisivamente a cobertura da Globo sobre a categoria e sua principal estrela.
Ele opta por não explica exatamente tudo o que houve neste livro, mas em conjunto com outras fontes, podemos entender que formou-se uma conspiração contra o próprio autor que envolvia desde colegas da imprensa até os empresários e patrocinadores de Senna, incluindo donos de bancos, que chegaram a pressionar o jornalista. Há um grande tom de injustiça sofrida e uma volta por cima, quando o piloto decidiu retornar o contato, anos depois. De fato, parece ter sido o caso, entretanto, essa história toda e o resto do livro permite um questionamento da ética profissional dele e do próprio meio do jornalismo esportivo, que talvez seja o que de principal podemos tirar desta obra.
Em todo o curso de suas memórias, Reginaldo cita como todos os grande patrocinadores e cartolas da F1, no Brasil e no exterior, eram seus amigos; que passava os dias na casa de um na Europa, ou contou com a ajuda de outro para emplacar um programa ou uma coluna. Da mesma forma com os pilotos: era íntimo de seus familiares, patrocinadores e empresários. Em vários momentos cita que conhecia alguns pilotos desde crianças ou adolescentes. Esses encontros não eram apenas coincidência, mas provavelmente um “networking” dos pais e empresários dos jovens para colocá-los no radar de Reginaldo e sua rede de grandes “amigos” – que em certo ponto eram, na briga com Senna, os representantes da Audi (do grupo VW) no Brasil, por exemplo, ou quando cita que Felipe Massa correu com patrocínio de seus “amigos” do Hospital São Luiz nas categorias de base.

Não se trata de um julgamento moral da vida ou carreira do autor; que parece ser genuinamente uma excelente pessoa e que, de fato, trabalhou muito a ponto do seu nome se confundir com o da categoria, entretanto há uma questão ética latente. Se ele sofreu uma grande injustiça em sua briga com Ayrton Senna, era algo a qual ele se sujeitou a desenvolver uma relação tão íntima com o piloto; já frequentava a casa dele quando criança, mas Leme também conta de lições e conselhos que deu ao grande ídolo em início de carreira, por exemplo. E, importante frisar, este não é o único caminho que um jornalista pode trilhar para ser bem sucedido na carreira, nem na Fórmula 1. Como, recentemente, lemos em Ímola 1994, a trajetória de Flávio Gomes, que também muito bem relacionado, nem de longe teve postura parecida ao criar intimidade familiar com os pilotos.
Aliás, a comparação entre os dois livros é inevitável. Seja na trajetória profissional, na qual Gomes é realmente um jornalista da categoria, e Reginaldo é alguém especializado em networking, mas também, na escrita. Enquanto o primeiro tinha uma estrutura criativa e ímpar (narrando sua vida profissional através de coberturas marcante da carreira), por aqui é tudo muito insonso. O livro não foi escrito por Reginaldo Leme, mas sim por Alfredo Bokel, antigo diretor da transmissão da F1 na Globo e atual assessor de imprensa da Stock Car e de Felipe Massa – outra pessoa da rede de contatos automobilísticos de Leme – conforme o comentarista iria rememorando, em escrita ou depoimentos, os episódios.
Imagino que ele tenha feito o melhor possível, mas dificilmente conseguiríamos alguma coisa diferente nesse formato. É um texto desinteressante, parágrafos curtos (alguns de uma ou duas linhas) que realmente parecem escritos correndo atrás do prejuízo: conforme Reginaldo lembrava, e Bokel tentava dar algum sentido e contexto, e depois algum tipo de organização cronológica ou temática. E aí esbarra na estrutura, também desinteressante, externa à carreira do próprio depoente, dividido através temporadas, títulos e pilotos e pilotos brasileiros. Neste último caso, faz até uma pequena biografia e resumo da carreira de alguns deles – qual o sentido disso em um livro de memórias pessoais?
Uma das poucas coisas que podemos extrair de único no livro é a discussão sobre a ética do jornalismo esportivo – se na Fórmula 1, que reúne da pessoas mais ricas e influentes do planeta, as coisas são tão intricadas assim, entre a cobertura e os atletas, imaginem em outros esportes. Como também é tudo chapa-branca, sem questionamentos ou mesmo polêmicas; nem histórias mais curiosas ou bizarras de bastidores temos por aqui. Em uma passagem sobre Massa, ele diz que o jovem “arrumou umas encrencas” quando correu pela Sauber, e só. Quais foram? Com quem? Sobre o que?
Não se trata de muito mais que uma coleção de anedotas inofensivas que estão aqui compiladas em uma estrutura e um texto sem sal. Até para fazer os apartes abaixo nesta resenha foi difícil achar coisas interessantes ou desconhecidas. O pior que é sendo alguém que acompanha Reginaldo Leme e a Fórmula 1 há décadas, eu já conhecia a maioria das histórias aqui contadas – um aviso para que também esteja na mesma situação e não se decepcione.
Mediano (2,5/5)
Não é muito mais que uma coletânea de anedotas que o comentarista rememorou de sua longa carreira, muitas já conhecidas e divulgadas pelo próprio, em um texto chapa-branca e insonso.
Linha cruzada – Um dos pilotos mais carismáticos da categoria, o francês Jean Alesi protagonizou uma das histórias mais engraçadas que o livro trás. Tudo teria começado no GP da Austrália de 1997. A cabine de transmissão da Globo não conseguia o retorno do estúdio brasileiro; o técnico de som da emissora, Cláudio Amaral, passou a corrida toda sempre buscando reestabelecer a comunicação repetindo a frase “Rio de Janeiro, na escuta?“.
Calhou que, naquele grande prêmio, Alesi vinha ganhando muitas posições com sua Benetton, e chegou à segunda colocação na volta 34. O detalhe é que essas ultrapassagens estavam sendo conquistadas conforme os ponteiros iam parando pra o reabastecimento, coisa que o francês não fez… e, como não poderia ser diferente, na volta 35 ele teve uma pane seca.

Descobriu-se ao final da corrida que seu rádio estava com falha e ele não ouvia corretamente – nem observou as placas que os mecânicos desesperadamente colocavam no pitwall – e não fez sua parada. Aproveitando da situação, Reginaldo disse para o técnico de som que, de tanto que ele ficou mexendo nos cabos, acabou desconectando o rádio do piloto. Os demais jornalistas entraram na brincadeira e virou uma “versão não-oficial” da imprensa brasileira para o incidente.
Algum tempo depois, no GP do Brasil de 1999, já pela Sauber, Alesi participou de um evento da imprensa brasileira (pois seu companheiro era Pedro Paulo Diniz). Reginaldo contou para o piloto sobre esse trote, que adorou a história; quando se apresentou à equipe da TV Globo, ele perguntou de onde as pessoas eram e quando alguém respondeu que era do Rio de Janeiro; ele comentou que havia perdido a corrida na Austrália com pane seca porque ao invés de ouvir a equipe, ficava “ouvindo um cara chamando o Rio de Janeiro”.
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