A Peste

A peste – Albert Camus

Tradução: Valerie Rumjanek – Editora Record

Ano de Lançamento: 1947 – Minha Edição: (23ª) 2019 (kindle) – 308 páginas


Provavelmente o livro mais lido da pandemia de covid, esta obra do filósofo argelino Albert Camus voltou a cena. Ele foi capaz de fazer um retrato certeiro, do ponto de vista psicológico, social e político que ele concebeu de um evento como aquele, a partir da história ficcional de um doença avassaladora que atingira a cidade de Orã, no litoral da Argélia, nos anos 40.

Dr. Rieux era um médico que vivia uma tragédia pessoal: sua a esposa tem o agravamento de sua doença – não especificada, e não relacionada com a peste – e precisa partir para um sanatório no interior. Durante o drama, ele acaba sendo acionado por conhecidos para tratar de uma estranha febre acompanhada de tosse com sangue. Observando a rapidez que ela vitimava as pessoas e o número de doentes, ele tenta acionar as autoridades da cidade para realização de algum plano de contingência. Apesar dos indícios, nem todos acreditam na gravidade do ocorrido… uma história que conhecemos bem.

Baseando-se em muitas obras e relatos de pestes anteriores, em especial de uma epidemia de cólera que atingiu o mundo nas décadas de 1840 e 1850 e que também chegou à Argélia, o autor consegue criar um cenário extremamente plausível de epidemia generalizada em sua época. Mas, no nosso caso, é como se estivéssemos lendo um escritor atual que adaptou à pandemia de corona vírus à primeira metade do século passado.

As discussões sobre adotar ou não medidas restritivas, sobre como, e até quanto, contar para a população, por exemplo, são completamente – e assustadoramente, até certo ponto – verossímeis. Este início da obra (e da peste) são os melhores momentos do livro, criando um suspense em relação a descoberta dos seus efeitos e capacidades, que instiga muito a leitura. Também, neste começo, está presente uma das principais analogias da obra; a ascensão do nazi-fascismo na França e na Argélia.

Os primeiros mortos são ratos, que começam a se avolumar. Algo até comemorado por alguns habitantes; e quando atinge os cidadãos, há um certo desdém das mortes. Esta seria a alegoria à tolerância que muitos tiveram com os fascistas quando sua perseguição era destinada aos grupos indesejáveis em seus países: deficientes, judeus, ciganos, eslavos e comunistas. Algo que, pouco tempo depois, converteu-se na ocupação da França (e outros locais da Europa) e na repressão generalizada aos não-colaboracionistas.

Por outro lado, conforme a praga se consolida, o foco do romance passa a ser o psicológico dos moradores da cidade em quarentena, e a obra perde em ritmo – mas ganha em profundidade, e aí vai do gosto de cada um. São várias as reflexões sobre como cada personagem enfrenta aquela condição; o texto adquire tons de crônica com a narração de alguns episódios especiais – alguns mais interessantes (como o do apaixonado que tenta escapar de Orã, ou da morte de uma criança) e outros menos (como o escritor que não consegue sair da primeira página).

Mesmo assim, persiste a capacidade incrível, comovente e assustadora de ser um contexto psicológico muito parecido com o que houve em 2020: espectadores assistindo reprises no cinema; pessoas repetindo rotinas; religiosos dizendo que ocorre um castigo divino… são alguns dos exemplos. Mas, por outro lado, falta amor e loucura, uma face interessante de se explorar nesse contexto. Todos os personagens, praticamente apenas homens, vivem suas vidas de forma mais ou menos regrada e organizada – o que nesse sentido, tira um pouco de movimento da narrativa – mas também, algo natural de uma realidade engessada (como bem sabemos) por uma epidemia.

O autor adota um recurso que não rende muitos frutos, um misterioso narrador que é personagem mas, ao mesmo tempo, onisciente. Sua identidade secreta é revelada nas últimas páginas, e é um mistério oco pois é o protagonista natural dos eventos; e é algo que não faz diferença no texto, pois ele também narra a si mesmo em terceira pessoa. Para explicar essa onisciência, ela alega estar construindo sua narração através de textos deixados por outros personagens.

Difícil falar isso de um autor tão consagrado, mas não acho que ele tenha feito isso tudo suficientemente bem para justificar tantas camadas de narração, não parece em nenhum momento que estamos vendo os ocorridos por diferentes pontos de vista, mas uma única versão com chatas pausas para explicar que tal informação vem de tal fonte.

A Peste parece ser um daqueles casos, muito interessantes, em que as obras passam adquirir imortalidade e relevância após muito tempo por eventos posteriores, a partir de uma nova leitura dela. E especificamente, ela consegue tocar àqueles que viveram a pandemia de uma forma certeira que dificilmente os próprios contemporâneos do COVID serão capazes de representar.

Bom (3,5/5)

Não é dos livros mais geniais do autor, mas olhando a partir de hoje, tem um retrato tão fiel e comovente de uma epidemia que mais parece um escritor atual transplantando a pandemia para os anos 40 e fazendo um “livro de época”.

Bairrismo: natural de uma pequena cidade costeira, próxima à fronteira com a Tunísia, o autor mudou-se, ainda bebê, para Argel após a morte de seu pai na Primeira Guerra Mundial, e fez sua vida toda na capital argelina. No país, há uma rivalidade entre ela e Orã, a segunda maior cidade, que disputam relevância política, social e cultural. Camus é acusado de fomentar mais essa rivalidade entre as duas: em vários momentos do texto o autor rasga “elogios” ao local, contando como a cidade é feia e sem graça.

A Revolução Argelina

Em uma das independências mais duras da história, uma guerra civil de 7 anos sacudiu Argélia e França, que não quis abrir mão de sua principal colônia após perder quase todo o Império.

Satre, Nazismo e Independência: Conforme a doença avança, a organização da sociedade de Orã se torna mais forte e um esforço contínuo é empreendido pelos personagens principais para consolidar as medidas sanitárias. Na opinião de Satre, o compatriota e eterno opositor de Camus, a alegoria à resistência e sofrimento da ocupação nazista se enfraquece.

Com divergências fundamentais no debate pela Independência de seu país em relação à França, Camus adotava uma política mais conciliadora entre colônia e metrópole, enquanto Satre desejava um rompimento completo. Nesse sentido, este último via em A Peste, nessa colaboração entre os personagens e as autoridades no combate contra a doença, uma mensagem de Camus enaltecendo o respeito às leis e aos governantes.

Transplantada, em primeiro momento, à ocupação nazista da França, essa solução alcançada pela união e “obediência civil” seria falsa, pois a resistência era ilegal e brutalmente perseguida; e também, se aplicada à revolução argelina, continuaria como uma alegoria ainda mais problemática, tendo em vista a repressão cruel e intensa dos franceses no país.


Últimos posts

Condição Artificial

Livre de todas suas amarras, o robôssassino vai atrás de entender seu passado. A novidade agora é sua interação com outros robôs e androides.

Lênin: uma introdução

Faz um esforço enorme de condensar vida e obra de Lênin em um livro de bolso; mas, ainda que seja uma boa introdução, oscila muito entre uma abordagem e outra, entre sua produção textual e eventos que ele participara.

Publicado por Lucas Palma

Paulistano, desde que me lembro por gente fascinado pelas possibilidades do futuro, em games, filmes e seriados, herança paterna e materna. Para surpresa geral, ao final da juventude descobri fascínio também justamente pelo oposto, me graduando e mestrando em História, pela Universidade Federal de São Paulo. Sou autor de Palavras de Revolução e Guerra: Discursos da Imprensa Paulista em 1932.

Deixe um comentário