Arrastados: os bastidores do rompimento da barragem de Brumadinho, o maior desastre humanitário do Brasil – Daniela Arbex
Ano de Lançamento: 2022 – Minha Edição: 2022 – 325 páginas
Em 2022 visitei as cidades históricas de Minas Gerais; durante o dia que passei em Mariana, logo de cara me chamou a atenção que as placas de ruas tinham o logotipo da Samarco abaixo do logradouro. Havia pagado por um transporte que nos levaria de Ouro Preto para lá, e assim que desembarcamos o motorista, que era bem falante, comentou que não era para ter medo de nenhum tipo de desastre, a cidade era muito segura – semanas antes houve um período de chuvas muito forte, que levou a desabamentos de imóveis históricos e estradas interditadas – e a Samarco cuidava muito bem de todos. Aproveitando a brecha, perguntei se o local do rompimento da barragem em Mariana – ocorrido por lá em 2015 – era próximo de onde estávamos, e se ainda havia locais destruídos; a resposta foi novamente relativa à garantia de que a Samarco cuidara de tudo.
Eu me senti em uma história de Ficção Científica ou distopia, envolvido em alguma conspiração de silêncio; com os moradores repetindo frases prontas sobre os rompimentos de barragem, como se sofressem algum tipo de lavagem cerebral. Vi, ao vivo e a cores, como o poder político e econômico de uma grande empresa é capaz de apagar uma história. Nesse sentido, qualquer esforço de não deixar esquecer tragédias como a de Mariana, e, especialmente a de Brumadinho, poucos anos depois, é louvável – e este deveria ser o objetivo da obra de Daniela Arbex.

Originalmente, a autora fez uma cobertura do desastre para o Diário de Minas e já prevendo a possibilidade de transformar aquelas reportagens em um futuro livro, passou a coletar o maior número de depoimentos envolvendo as centenas de pessoas atingidas. E estas histórias constituem o núcleo principal desta obra, mas não sem seu formato original.
Completamente imersa na moda atual de storytelling, a autora leva ao (ou passa do) limite a ideia do Romance de Não-Ficção, tomando o lugar dos seus personagens e testemunhando por eles os eventos. Se o gênero, inaugurado por Operação Massacre, criou uma nova forma de se fazer jornalismo, ao estabelecer uma narrativa envolvente para contar uma história real; Rodolfo Welsh nunca se sobrepôs às suas fontes, sempre buscando contar uma história mais fiel, ou verossimilhante, o possível do que ele havia coletado.
Especialmente porque o objetivo do escritor argentino era denunciar as 12 execuções de civis cometidas ilegalmente pela ditadura militar, instaurada por um golpe de estado, e fazer com que responsáveis fossem levados à justiça – objetivo que Welsh conseguiu, ainda que o governo tenha manobrado e feito com que o inquérito fosse arquivado. Era necessário que ele fosse fiel ao máximo às provas que encontrou de modo a tornar a história crível (a versão do governo citava o fuzilamento de várias pessoas devido à lei marcial e uma tentativa de contragolpe à ditadura, entretanto essas vítimas em especial estavam a quilómetros de distância sem envolvimento algum ), e fortalecer uma denúncia e um eventual processo.
Operação Massacre
Em junho de 1956, um grupo de militares peronistas tentou derrubar a ditadura argentina; e a alguns quilómetros de distância 12 homens foram presos e executados como se fossem conspiradores. Essa história seria desconhecida não fosse este livro.
Diferentemente, Daniela Arbex – após ser reconhecida pelo magistral Holocausto Brasileiro, no qual faz um trabalho análogo ao de Welsh, recolhendo provas e fontes para trazer a luz o obscuro o genocídio feito no Hospital psiquiátrico de Barbacena, escondido por décadas – passou a se especializar em contar tragédias de grande repercussão midiática. Antes de Arrastados, escreveu sobre o incêndio na Boate Kiss, e depois, sobre o incêndio no CT do Flamengo, que vitimou crianças das categorias de base do clube carioca.
Nesse sentido, apesar do tema muito delicado, trágico e triste, a posição da escritora é relativamente confortável. Escrever sobre algo recente que já era muito conhecido e que já causara muita comoção, e que certamente vai impactar e cativar o leitor – não estamos falando de 12 fuzilados por um ditadura militar, nem de pacientes psiquiátricos esquecidos em uma remota colônia hospitalar. Não a toa, há o subtítulo sobre, então, revelar supostos “bastidores” do desastre para tornar um produto mais atrativo.
Entretanto, essa expressão é enganosa. Há um quê de que haverá uma grande “denúncia”, coisa que só ocorre passadas 240 páginas. O principal do livro são reconstituições, com extrema “liberdade poética”, na falta de melhor expressão, que Arbex faz de pessoas que foram atingidas pelo rompimento. Escrevendo como se ela fosse uma narradora onisciente, ela descreve sentimentos, movimentos, falas e até pensamentos diante da morte dos personagens. Uma opção que eu, pessoalmente e profissionalmente, como historiador, discordo frontalmente.
Claro que a reconstrução é feita a partir de depoimentos, mas não concordo com um autor passar por cima das suas fontes e simular diálogos, sentimentos e, até mesmo, inventar pensamentos de pessoas antes de morrer. Acho antiético, como alguém que também estudou e praticou a “arte” de registrar a vida de outras pessoas; e também do ponto de vista das pessoas retratadas, que teriam suas próprias formas de descrever o ocorrido, mas que foram substituídas por capricho editorial e comercial.
Buscando respeitar as vítimas, a autora sempre tenta dar uma profundidade aos personagens, contando episódios de suas vidas, e ressaltar a nobreza de cada um dentro de seu retrato como pessoa comum. O que prejudica a compreensão geral dos eventos de Brumadinho: acontecimentos aleatórios do passado das vítimas, inseridos por Arbex para dar “vida” àqueles nomes, se misturam a coisas que ocorreram naquela data; assim como também falta uma cronologia mais coerente entre os pseudo-depoimentos: estamos lendo sobre as pessoas que estavam presas na avalanche, e depois já sobre o resgates que começaram em horas; mas na página seguinte era o outro dia; e alguma outra lembrança do dia da tragédia retorna; e aí já se passou uma semana. Uma cronologia confusa é esperada de uma coletânea de depoimentos, mas não é a isso que a autora se propõe.

Paralelamente, desejando demonstrar muito respeito aos envolvidos, ela descreve todos com nobreza e profundidade, e o que temos é uma série heróis – inclusive com algumas muletas e clichês do gênero, como um trauma de infância que fez alguém seguir uma profissão, por exemplo. E, se é positivo tratar com tanto respeito as vítimas, por outro lado, isso sai pela culatra numa perspectiva maior. As vezes tem cara de quase ser um institucional da Vale e suas subsidiárias: as empresas eram compostas todas por funcionários maravilhosos, competentes e que amavam o que faziam e suas empregadoras.
O livro só toma contornos mais jornalísticos na reta final, quando Arbex, de fato, começa a fazer uma reportagem, descrevendo a investigação para instauração dos processos em cima dos eventos e fazendo uma crítica tímida ao sistema, ao apontar como a Vale conseguiu ainda se valorizar no mercado ao final daquele ano. Ainda assim tentando manter, de forma bem irregular, o formato narrativo, ao descrever cenas e diálogos com onisciência – e não fica claro de onde ela tirou certas coisas, foram depoimento dos investigadores, dos investigados?
O esforço de manter viva a história da tragédia – ou melhor, de suas vítimas – é louvável, para não acontecer o que eu mesmo testemunhei, seu apagamento. Entretanto, os objetivos editoriais e comerciais da autora nitidamente se sobrepõem a essa missão; ao invés de uma coletânea de testemunhos temos uma série de pseudo-depoimentos que prioriza o drama – ou melhor, o dramalhão (a passagem que conta do “coração de lama” é bizarra) -prejudicando a compreensão geral. Ela trabalha em uma posição muito confortável, apesar da tragédia, escrevendo o que sabe que vai causar muita comoção sem explorar adequadamente as controvérsias do “maior desastre humanitário da história do Brasil”.
Mediano (2,5/5)
Composta por vários pseudo-depoimentos, é uma obra que passa do limite do “romance de não-ficção”. Enfraquece a tragédia ao sobrepor o registro ou denúncia dos eventos por uma narrativa apelativa.
Política – A autora faz um esforço hercúleo para deixar totalmente de fora qualquer contexto político, provavelmente mais um compromisso para deixar o livro mais palatável comercialmente. Há citações muito esporádicas ao governador de Minas, Romeu Zema, ao então ministro Ricardo Salles e ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Pela opção de Arbex de praticamente ignorar a controvérsia, são todos personagens neutros, íntegros e que contribuíram com o resgate das vítimas.
Não são levantadas contradições alguma do posicionamento de nenhum destes políticos com relação ao Meio Ambiente e à Mineração em suas campanhas eleitorais – eram todos recém-empossados. Pelo contrário, em uma passagem, a autora relembra a inexplicável “missão israelense” enviada pelos militares de Israel para auxiliar nas buscas, e foi embora pouco tempo depois. Não eram especialistas em salvamentos daquele tipo e trouxeram equipamentos para localização de transmissões de celulares, que já não seriam úteis naquele contexto, passados alguns dias e baterias descarregadas.
A autora ironiza qualquer “teoria da conspiração”, como ela classifica a controvérsia, de objetivos externos (para aproximação de Bolsonaro com os militares israelenses) por trás dessa missão de ajuda e diz que eles ajudaram de alguma forma – e aliás, gostaram de comer paçoquinha, que fofo. Provavelmente não havia nenhum tipo de relação com a descoberta deste ano, na qual um núcleo secreto, dentro da Abin, usou um programa israelense para monitorar, sem mandatos ou mesmo registros, a localização de pessoas através de seus celulares durante o governo Bolsonaro. Uma feliz coincidência regada à paçoquinhas.
Questão de classe – É possível observar nas entrelinhas verdadeiras fraturas de classe entre as vítimas do acidente. Fazendo as pequenas biografias os atingidos, Arbex conta a história de técnicos que comiam pastel no café da manhã e de engenheiros que no ano anterior estavam em férias na Grécia. A autora tenta dar a mesma importância e respeito independente da condição financeira das vítimas. É uma questão de perceber isso na leitura.
Entretanto, mesmo inadvertidamente, acaba por criar algum tipo de mal estar nesse sentido quando comenta, muito rapidamente, ao final do livro, o destino de algumas das indenizações recebidas por sobreviventes ou familiares; enquanto não há destaque para os valores recebidos pelos operários – cita que um reformou a casa e outro usou para sobreviver pois não conseguiu mais emprego na área devido ao trauma sofrido – os funcionários de alto escalão têm registro de criarem fundos beneficentes, doações, homenagens entre outros motivos muito nobres. Como a abordagem do livro é insonsa para a questões políticas, atendo-se ao drama, joga água no moinho de que pobre não sabe administrar seu dinheiro.
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