Flores para Algernon

Flores para Algernon – Daniel Keyes

Tradução: Luisa Geisler – Editora Aleph

Ano de Lançamento: 1966 – Minha edição: 2018 – 284 páginas


Todo tipo de deficiência, seja ela física ou intelectual, gera uma questão filosófica por trás; se elas seriam patologias, doenças, e, dessa forma, elas deveriam ser tratadas ou curadas? O debate sobre isso é amplo; com certeza uma pessoa com determinada dificuldade de mobilidade, por exemplo, desejaria vê-la sanada, por uma série de motivos. Entretanto, esse mesmo entendimento gera uma série de outros questionamentos envolvendo o direito e a existência dessas pessoas como cidadãos, e seres humanos, com plenos direitos – uma das obras pioneiras, na contemporaneidade, para essa discussão é Flores para Algernon.

Publicado originalmente como um conto, em 1959, e posteriormente expandido para um romance em 1966, Flores para Algernon conta a estória de Charlie. Um homem de 32 anos com deficiência intelectual não identificada e que é cobaia em um experimento revolucionário, que promete, através de uma cirurgia, transformá-lo em um gênio.

Antes dele, a “vítima” havia sido um rato, Algernon; que teve um resultado extremamente positivo. O pequeno animal começou a resolver desafios, propostos pelos cientistas, cada vez mais complexos e até mesmo apresentando certa racionalidade em algumas situações – Charlie, no início de seu processo, até fica com ciúmes da inteligência do roedor com quem convive durante o dia a dia no laboratório.

O progresso do protagonista, e toda a obra, na verdade, é contado em ritmo epistolar, através de entradas em seu diário – que o livro justifica como “relatórios de progresso”. Originalmente com texto repletos de erros de ortografia e concordância, conseguimos acompanhar sua evolução com a paulatina melhoria da sua escrita – o momento em que ele faz uma rasura para a correção de seu erro é um dos mais legais do livro.

Esse início me afastou um pouco, todavia. Causam muita estranheza, todos os erros, e dificultou a leitura, você fica com vontade de parar de ler ou de pular tudo – é uma sensação curiosa. Não por isso, ainda assim, acho que é um ponto fraco do texto em um sentido mais amplo; a deficiência de Charlie não deveria se traduzir apenas em frases simplórias e erros de ortografia; deveria ou produzir textos sem sentido e com dificuldade de interpretação ao leitor, por exemplo. Há também algumas entradas nessa espécie de “diário” que não fazia sentido ele escrever para outras pessoas, como registro de certas coisas que ele descreve estar escondendo dos cientistas – não fica claro também com que periodicidade ele entrega os relatos, ou sequer se entregou tudo que escreveu.

O grande trunfo da obra, por outro lado, é o verdadeiro estudo de personagem. Apenas aumentar o QI de Charlie não é o suficiente para “integrá-lo” na sociedade. Com o passar do tempo ele, que tem um subemprego numa padaria, passa a ser rechaçado pelos colegas de trabalho por se tornar, supostamente, arrogante, ao não aceitar ser passado para trás ou humilhado na pequena indústria. Da mesma forma, ele realmente se torna arrogante com o passar da experiência, ao não compreender as limitações dos cientistas envolvidos no projeto e das pessoas, no geral – em certo ponto ele comenta, “como que alguém não consegue ler japonês, italiano ou hindu?”.

Ele ganha em inteligência, mas não em maturidade – tem grandes problemas com seus sentimentos amorosos e sexuais, em especial envolvendo sua professora da época da escola para adultos especiais, sobre quem ele desenvolveu uma paixão platônica. Esses trechos, inclusive, foram suficientes para a obra ser considerada imprópria para crianças e adolescentes em alguns estados dos EUA, sendo retirada de bibliotecas escolares.

Gostaria que o livro trabalhasse mais com essas questões da sua arrogância intelectual e a insuficiência de ser genial para se integrar na sociedade, e como a inteligência também afasta amizades. Mas o livro tem outro foco nesse aspecto: o olhar dos demais personagens especificamente sobre o protagonista e sua jornada. Quase todas as pessoas com as quais Charlie interage sabem de seu passado e das duas uma: ou o menosprezam por ser um experimento e não um gênio nato, ou menosprezam o seu passado como deficiente intelectual – até mesmo o protagonista vive esse dilema com seu antigo eu.

Muito do legado do livro é advindo de suas inúmeras adaptações, em diversos formatos, que normalmente são bem sucedidas e até mesmo ganhadoras de prêmios como Oscar e BAFTA – afinal, aqui temos mais um drama que uma ficção científica – e, especialmente, inúmeras reencarnações através de episódios de séries diversas; de sitcoms a animações. Nesse sentido, é até estranho atribuir todas as diversas estórias envolvendo experimentos para melhoria de inteligência a Flores para Algernon.

A ideia da “lobotomia do bem” não era nova; li há pouco Pedra no Céu, de Isaac Asimov, escrito alguns anos antes, e uma mesma cirurgia tem papel central. Entretanto, lá o foco está longe da questão humana do problema, que aqui é o aspecto mais privilegiado. O objetivo deste texto é fazer com que nós criemos uma empatia extrema por Charlie; a cada novo registro (e por isso optar pelo texto em organizado no “diário”) o autor deseja que nós sintamos o que Charlie sente – e nisso é muito competente.

Muito Bom (4/5)

Um clássico da ficção científica, embora se assemelhe mais a um drama. Sua relevância nem tanto se deve pelo conteúdo pseudo-científico, mas pela abordagem, um dos pioneiros no gênero a focar na parte humana e pessoal dos experimentos.

Neurodivergentes na Ficção Científica – Outra obra do gênero que coloca as pessoas neuro divergentes no foco é O Tempo em Marte, de Phillip K. Dick. Naquele livro, as pessoas com autismo teriam uma incrível habilidade sensorial que seriam até capazes “poderes sobrenaturais” – não vou entrar em detalhes para evitar spoilers – e, paradoxalmente, isso que não permitiria sua compreensão da sociabilização humana.

Conforme comentamos na resenha, o diagnóstico do autismo é completamente equivocado – afinal, obra foi escrita, como esta, nos anos 60 – mas o tratamento dos personagens é muito humano e demonstra uma postura avançada do autor nos direitos das pessoas neurodivergentes.

Adaptações – Muito do legado deixado pelo livro, como comentamos, vem das inúmeras adaptações para o cinema feitas sobre ele. A mais famosa é Os dois mundos de Charly, de 1968, que foi sucesso de crítica e público com vitórias no Globo de Ouro e no Oscar de Melhor Ator para o intérprete do protagonista – que, curiosamente, também fez o mesmo papel na primeira adaptação, em um episódio de um seriado em 1961 (anterior mesmo à publicação da estória em formato de livro).

Também houve muitas peças de teatro, e vários episódios de séries com inspiração do livro – fica difícil rastrear o quanto é sobre Flores de Algernon e o quanto é algo mais genérico sobre experimentos de aumento de inteligência. Outras encarnações numerosas foram os filmes para a TV, não só nos Estados Unidos, mas também com exemplares produzidos na França e no Japão.

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Publicado por Lucas Palma

Paulistano, desde que me lembro por gente fascinado pelas possibilidades do futuro, em games, filmes e seriados, herança paterna e materna. Para surpresa geral, ao final da juventude descobri fascínio também justamente pelo oposto, me graduando e mestrando em História, pela Universidade Federal de São Paulo. Sou autor de Palavras de Revolução e Guerra: Discursos da Imprensa Paulista em 1932.

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