Ímola 1994

Ímola 1994: a trajetória de um repórter até o acidente que chocou o mundo – Flávio Gomes

Ano de Lançamento: 2021 – Minha Edição (2a) : 2024 – 389 páginas


Poucos acontecimentos foram tão decisivos para a história do esporte, ou para alguma modalidade, quanto a morte de Ayrton Senna no Grande Prêmio de San Marino de 1994. Para além do aura de santificação adotada pela imprensa para o piloto, a sua morte não tem paralelo dentro da Fórmula 1; categoria mais importante dos esportes a motor no mundo. Sob diversas óticas, os acontecimentos no circuito de Ímola em 1994 funcionaram como um divisor de águas. Os carros estavam cada vez mais rápidos e mais tecnológicos, a partir das suspensões ativas e controles de tração, recursos os quais possibilitavam os pilotos serem cada vez menos cautelosos nas pistas.

Após as mortes daquele grande prêmio, outras perguntas passaram a ser feitas; se não nos carros e nos pilotos, os problemas estariam nos circuitos? Nos equipamentos de segurança? Nos procedimentos? Desde então, nunca mais foi registrada uma morte ocorrida durante uma corrida de Fórmula 1 – com exceção de Jules Bianchi, que faleceu 9 meses depois de seu acidente com um guincho, no GP do Japão em 2014.

Curiosamente, para o jornalista Flávio Gomes, um dos principais nomes da cobertura do esporte no Brasil, o primeiro de maio de 1994 também transformou sua carreira.

Este livro se trata de uma espécie de autobiografia profissional de Gomes; que decide contar como deu seus principais passos no jornalismo – desde suas primeiras brincadeiras de criança fingindo ser um repórter, nos anos 70. Após formar-se em Rádio e TV e trabalhar como redator para uma publicação da Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência, Flávio fora contratado pela Folha de São Paulo, inicialmente para a editoria de ciências e tecnologia, mas conseguiu se encaminhar para Esportes em pouco tempo, e em 1988 já estava escalado para cobrir o Grande Prêmio do Brasil daquele ano, em Jacarepaguá.

Para quem busca o livro tão somente para informações e histórias da Fórmula 1, ele só começa mesmo a partir desse momento – na realidade a apenas a partir da página 131, na cobertura do GP da Espanha de 1990. O texto é estruturado em vários capítulos curtos, em formato de crônicas, e, muito inteligente, emulando em seus títulos etapas de um calendário da Fórmula 1: este que acabei de citar é “Jerez de la Frontera, 1990″, como temos Estoril, 1993 ou Aida, 1994; inclusive para capítulos que não são relativos à categoria, como “Campinas, 1988“.

Diferentemente de O Boto do Reno, livro previamente publicado pelo autor, as crônicas que compõem o texto não são de viagens. Mas também não são relatos das corridas. São crônicas de jornalismo. Gomes rememora como cobriu corridas e momentos chaves da categoria na virada das décadas de 1980 e 1990. Conta com quem conseguiu tal informação, como fez para chegar no circuito, como foi a entrevista com determinado piloto; como gravou as conversas, como fazia para transmitir a reportagem do local do grande prêmio para a redação do jornal, como realizou a diagramação da página do jornal, quais os debates editoriais sobre alguma reportagem.

Um dos pontos mais curiosos era a ginástica que ele, e os colegas do jornal, precisavam fazer quando as corridas eram na madrugada do sábado para domingo – normalmente os dois últimos GPs do ano, Austrália e Japão. A edição de domingo era a mais importante da semana, e por conta do fuso horário, não teria o resultado da etapa pois era fechada no sábado a noite, mas quando os leitores a lessem pela manhã, a corrida já tinha acontecido. Em 1991, por exemplo, bolaram uma reportagem dupla com o aviso “Leia [aqui] se o Senna for campeão” e “Leia [aqui] se o Senna não for campeão“.

Já um evento grandioso, luxuoso e milionário, a Fórmula 1 naquele período ainda permitia uma relativa proximidade entre pilotos, fãs e jornalistas – e um certo amadorismo – no bom sentido, de praticar por amor – que hoje já seria inimaginável. Assim como o nível competitivo, com carros mais ariscos e menos confiáveis, frequentemente fazem a época ser conhecida como os anos dourados da categoria. O fato de os pilotos brasileiros conquistarem 6 títulos entre 1981 e 1991 é apenas uma feliz coincidência do porquê de o período interessar tanto aos fãs do automobilismo e do jornalista.

Foto após o teste de pré-temporada, em Portugal, em 1994; quando Gomes conseguiu arrancar sua melhor declaração de Ayrton Senna.

Nesse sentido, Senna é um personagem central do livro, como não poderia ser diferente. Muitas das corridas escolhidas por Flávio Gomes para compor a obra têm alguma relação com o tricampeão; como o GP de Portugal de 1993, quando ele teve uma exclusiva com Senna – dias antes de a sua transferência para a Williams ser anunciada, para intensa frustração do entrevistador, que não conseguiu exatamente a informação que precisava; ou os testes, no mesmo autódromo português, em 1994, quando ele conseguiu arrancar do piloto que o carro da Williams daquele ano, que Senna havia tanto sonhado, era uma merda – ou quase isso.

Há espaço para outras histórias muito importantes daqueles anos: a estreia de Schumacher no GP da Bélgica de 1991 e a campanha “Free Gachot“; a aposentadoria melancólica de Prost e Piquet, que ainda buscavam contratos com outras equipes e não conseguiram o que queriam; a mudança para novos circuitos, como Barcelona e Magny-Cours ou o curto retorno da África do Sul ao calendário, após o Apartheid. Mas, ainda assim, tudo caminha para o fatídico GP de San Marino.

Mas tudo começa com algumas notas de sua infância e adolescência, essa é a parte menos interessante do livro; e que até mesmo causa uma certa indignação quando descobrimos que o autor morava no mesmo edifício que um futuro governador do Rio; e que sua família podia fazer viagens internacionais nos anos 70 e que, em São Paulo, residia nos Jardins. O sentimento não provém do autor ou sua trajetória, mas da constatação de que ele, um cara tão pé no chão, humilde, “gente da gente”, também é fruto de um ambiente extremamente privilegiado e só por isso conseguiu transformar seu talento nato numa grande carreira. Da mesma forma, não deixa de ser um começo piegas para o livro; ao criar uma sensação de “predestinação” para o autor e sua carreira.

Mas, como tudo o que Gomes escreve, é um texto muito pessoal; repito o que disse em outras resenhas dele: é quase possível escutar sua voz ao ler. Aliás, nesse sentido, seu talento e brilhantismo fica evidente ao observarmos o livro como um todo. Ele consegue costurar perfeitamente sua trajetória profissional com as histórias que desejava contar da Fórmula 1, tendo como foco chegar à cobertura de Ímola, em 1994, quando um desentendimento com seus chefes, sobre ficar na Europa ou voltar ao Brasil, resultou em sua demissão da Folha de São Paulo – e decidiu, então, trabalhar de forma autônoma a partir de sua própria agência de notícias. O texto, vencidos os capítulos sobre a infância, é de uma fluidez espetacular.

A cada nova crônica ele nos permite mergulhar no universo da categoria e especialmente do jornalismo. O período coberto é um momento muito intenso da profissão, com um avançar das telecomunicações transformando as investigações e conexões em processos cada vez mais rápidos; ao mesmo tempo que ainda necessitava de muito toque humano e de muito papel. Sem dúvida um profissional muito privilegiado por ter trabalhado nesse período e nós também somos leitores muito privilegiados por poder compartilhar daqueles dias da carreira de Flávio Gomes.

Muito Bom (4,5/5)

Uma autobiografia profissional construída a partir de uma série de excelentes crônicas de jornalismo contando a história de boa parte dos melhores anos da fórmula 1.

Do Telex à internet: O período coberto no livro corresponde também à migração do telex para a internet nas coberturas jornalísticas. Os circuitos dispunham de salas de transmissões com inúmeras máquinas de telex, nas quais os repórteres digitavam seus textos – ou entregavam para datilógrafos profissionais disponibilizados pelas assessorias de imprensa – que eram transmitidos às redações dos jornais em seus países.

O telex era uma rede internacional que conectava terminais de máquinas de escrever em todo o mundo e permitia a troca quase instantânea de mensagens de textos; mas que rapidamente caiu em desuso nos anos 90 com o advento da internet. Gomes narra muitos momentos de transmissões via telex e sua incompatibilidade pessoal com a nova ferramenta da internet e os laptops.

Sala de Telex para a imprensa no estádio de Mar del Plata, durante a cobertura da Copa do Mundo de 1978, na Argentina.

Falando com Deus: uma das características mais polêmicas de Ayrton Senna era sua religiosidade fervorosa, que muitas vezes criava desavenças com demais pilotos ao colocar-se como moralmente superior aos colegas. Em uma das crônicas, Gomes relata o contato que teve com esportista no qual ele dizia que havia falado com Deus no dia anterior sobre sua vitória.

Geografia do Jornalismo: algumas das crônicas de Flávio Gomes são relativas ao cotidiano da redação da Folha de São Paulo; que funcionava num ritmo alucinante, especialmente em relação às redações de revistas semanais, como a Placar, a qual ele teve uma rápida passagem na época. Uma das coisas mais interessantes é a localização da redação, na Alameda Barão de Limeira, nos Campos Elísios, região central da capital. E, assim, os caminhos que ele fazia para ir e voltar do trabalho, para ir almoçar ou comer um lanche em estabelecimentos tradicionais do centro de São Paulo.

Embora a gráfica tenha sido desativada e desmontada há alguns anos, os jornalistas ainda trabalham no mesmo prédio ainda hoje, em 2025, o que fiquei feliz de constatar. Veremos por quanto tempo resistirá; tanto o jornal quanto sua localização.

Fim de uma era: não sou dos maiores fãs de Senna, mas é curioso como o GP de San Marino, em 1994, foi um divisor de eras na Fórmula 1 como talvez nunca mais se repita. A principal mudança foram as medidas de segurança; conforme iniciamos o texto; foi a primeira vez que a categoria realmente colocou em perspectiva a vida dos pilotos para além de medidas paliativas.

Entretanto, do ponto de vista esportivo, olhando de trás pra frente; calhou que aquela temporada foi um marco histórico. Alguns pilotos característico dos anos dourados ainda apareceram depois de 94, como Roberto Moreno e Gehard Berger, e outros que fariam história naquela década já estavam nas pistas; a começar pelos próprios campeões Mika Häkkinen, Schumacher e Damon Hill. Mas, com a morte de Senna e a aposentadoria de Michelle Alboreto ao final da temporada – que viria a falecer em um teste para as 24h de Le Mans em 2001 – todos os pilotos que disputaram o título nos anos 80 saíram da categoria.

No livro, isso é muito bem retratado com a cobertura de Gomes sobre o fim da carreira na Fórmula 1 de Nelson Piquet e Alain Prost, respectivamente em 1991 e 1993, pilotos que, juntos, protagonizaram todas as temporadas da década. Ambos desejavam ainda continuar na categoria, e em equipes de ponta, e, ainda, como seus principais pilotos, mas os principais times já não os viam na mesma posição e buscavam apostar numa nova geração. Nenhum conseguiu colocar-se no local desejado, após várias negociações frustradas, devidamente rememoradas pelo autor, e encerram sua história.

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Publicado por Lucas Palma

Paulistano, desde que me lembro por gente fascinado pelas possibilidades do futuro, em games, filmes e seriados, herança paterna e materna. Para surpresa geral, ao final da juventude descobri fascínio também justamente pelo oposto, me graduando e mestrando em História, pela Universidade Federal de São Paulo. Sou autor de Palavras de Revolução e Guerra: Discursos da Imprensa Paulista em 1932.

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