Os Despossuídos

Os Despossuídos – Ursula K. Le Guin

Tradução: Susana L. de Alexandria – Editora: Aleph

Ano de Lançamento: 1974 – Minha Edição: (2ª) 2019 – 379 páginas


Após uma grande revolução de escala planetária, os Odonianos, um numeroso grupo anarquista de Urras, foi exilado em sua lua, Anarres. Ainda que habitável, esse local era uma colônia de mineração e muito pouco fértil, tanto em vida animal e vegetal; o cenário “perfeito” para a tentativa e estabelecer no poeirento planeta um mundo totalmente Anarquista.

Este é apenas o contexto de Os Despossuídos; cuja estória se movimenta quando Shevek, um importante físico de Anarres, decide desertar e mudar-se para um dos países de Urras. Apesar de um movimento voluntário e permitido por ambas as partes, seu gesto é repleto de tensão, pois sua pesquisa pode revolucionar o campo da exploração espacial.

A principal característica do livro é como ele é denso, ao mesmo tempo, não tem muita cerimônia para te explicar as coisas. Nós já começamos com a partida do protagonista, sem maiores explicações ou contexto; os nomes dos locais e personagens são dados como se já soubéssemos de quem e o que se trata. Isso não é ruim, pelo contrário, é a autora confiando na nossa inteligência – e, nela mesma, de saber que vai conseguir, ao longo do texto, introduzir todos os elementos necessários para aproveitarmos a obra.

Mas, por outro lado, não é uma opção sem consequências. Pode afastar ou quebrar uma leitura inicial para quem que não esteja tão dedicado; mas, também, acaba sacrificando o aproveitamento das partes iniciais. Por exemplo, não consegui saborear a fina ironia de que o primeiro local da colônia anarquista era um muro com a inscrição de “Não Ultrapassar“, o único muro com aquele propósito de todo o planeta.

Ainda assim, a estratégia é bem sucedida a criar um ritmo ótimo a obra. Desde o início somos apresentados as variadas contradições dos personagens e conceitos da obra: se Anarres é a utopia anarquista colocada em prática (e sim, o é) suas condições geológicas e climáticas transformam a experiência em uma penúria sem fim de trabalho duro e administração da escassez. Da mesma forma, a extrema igualdade cria uma sociedade que poderíamos considerar fria em vários momentos: os filhos e pais não têm relações tão próximas para evitar o autoritarismo de um sobre o outro, por exemplo.

Por outro lado, Urras, é belo, abundante em natureza e recursos; com pessoas calorosas e muito atenciosas para a chegada do nosso protagonista. Algo que, sim, é verdadeiro, mas rapidamente se mostra igualmente complexo: é uma sociedade extremamente estratificada, em gênero e renda; assim como fracionada em outros tantos estados nacionais. A abundância, o calor e a liberdade que o protagonista experimenta só é possível pois foi recebido por uma elite local.

Claro que, por se parecer muito mais com a nossa realidade, este último cenário é muito menos interessante. Mas Le Guin consegue balancear isso em uma estrutura magistral: a estória vai e volta em duas linhas do tempo, acompanhamos, de forma intercalada, a jornada de Shevek ao chegar em Urras, e sua vida anterior em Anarres. Nesta última, vamos descobrindo como funciona aquela sociedade tão diferente e igualitária, assim como os traços do protagonista, em uma jornada comovente sobre família, amor, filhos, introspecção, trabalho e idealismo. Enquanto na primeira, apesar de um cenário mais familiar, é onde se desenvolve as principais reviravoltas da trama, referentes aos usos da teoria do cientista e as tensas disputas políticas do planeta. Nunca somos deixados na mão, todo capítulo é de leitura estimulante.

E o que não falta é estímulo. Novamente, é uma Ficção Científica muito densa, a todo momento somos apresentados a novos conceitos e nomes daquele universo, e a questão da linguagem é um destaque especial. Os Odonianos – nomeados assim em homenagem a líder do movimento, Odo – criaram um novo idioma “artificial”, o Právico, de modo a refletir sua nova sociedade anarquista, cuja principal característica é abolir ao máximo o uso de pronomes possessivos nada é “meu” ou “seu”.

O trabalho de worldbuilding, na falta de melhor expressão em português, é fabuloso – rivaliza até mesmo com o velho Estrela Vermelha, de Aleksandr Bogdanov. Além da língua, Ursula descreve como funciona a administração de Anarres: sua política para a infância, ou para o trabalho, como ainda a distribuição de bens de consumo e habitação. Para Urras, a imaginação não é tão grande, mas há também um grande esforço para desenvolvê-lo; naquele mundo há uma nação, Thu, que também se identifica com os ideais de Odo, mas que é organizada em um regime que se assemelharia ao Socialismo Real, através de um imponente Estado – e, portanto, renegada pelos odonianos; um detalhe muito interessante.

Ainda assim, a autora é muito melhor que uma teoria da ferradura, que frequentemente surge nas interpretações gringas desta obra. Ursula Le Guin deixa claro que Anarres é uma sociedade que superou Urras, e, que, naturalmente, ela também tem seus contradições, e, especialmente seus limites. Mas isso não deve impedir nossa busca na criação de uma sociedade melhor, aliás, pelo contrário, deve nos incentivar sempre a superar nossas contradições e não nos ater a elas como dogmas instransponíveis – como Shevek fez, ampliando os limites de sua mensagem ao máximo possível.

Excelente (5/5)

Um das ficções-científicas mais densas que já li. Repleta de construções, conceitos, temas, personagens e reviravoltas; é a comovente jornada de alguém que deseja constantemente superar os limites e contradições das nossas formas de organização social.

Oppenheimer: antes de ser associado ao filme da Barbie, o cientista nuclear que acabou virando popstar devido ao fenômeno cinematográfico, era uma figura restrita aos círculos acadêmicos; especialmente por suas ligações com os movimentos comunistas dos Estados Unidos. Ele era amigo dos pais da autora, que conviveu com o renomado pai da bomba atômica quando todos trabalharam como professores universitários em Berkeley; e serviu de modelo para o comportamento e aparência de Shevek, o físico protagonista de Os Despossuídos.

Anarco-Sindicalismo: a corrente política que talvez se aproxime mais da forma de organização que existe em Anarres é esta, que tem suas raízes no início do século XX. Pressupõe uma sociedade sem Estado (burguês ou operário, e, desta forma, uma oposição ao Socialismo) na qual a produção seria controlada através das relações entre os sindicatos. Cada organização, gerida por sua categoria e local, receberia determinadas demandas sociais e adequaria produção de bens de acordo com as necessidades dos demais grupos (sem produção de excedente). No caso de Os Despossuídos, haveria um órgão, também gerido por trabalhadores, que, com ajuda de projeções e computações, que seria o responsável por fazer essas distribuições de demanda e trabalho.

Essa corrente era extremamente forte na Europa e, especialmente, aqui na América Latina (muito por influência da imigração italiana e espanhola para cá), dirigindo os principais sindicatos no começo do século passado. Com a Revolução Russa, e o estabelecimento do Socialismo Soviético, o anarquismo perdeu força (ainda que no Brasil continuasse dominante nos sindicatos), mas foi o principal movimento de esquerda durante a Guerra Civil Espanhola (1936-39), e foi a espinha dorsal da militância que lutou contra a ascensão do nazifascismo em sua época.

Com seu quase extermínio na Espanha e a vitória da União Soviética na Guerra Mundial; por um lado o Socialismo Real do bloco oriental monopolizou as formas de organização de esquerda, e, por outro, gradualmente o bloco ocidental incorporou os sindicatos no Estado através da garantia de direitos trabalhistas mediados por essas organizações. Assim, o Anarco-Sindicalismo acabou desaparecendo do mapa político.


Últimos posts

Condição Artificial

Livre de todas suas amarras, o robôssassino vai atrás de entender seu passado. A novidade agora é sua interação com outros robôs e androides.

Lênin: uma introdução

Faz um esforço enorme de condensar vida e obra de Lênin em um livro de bolso; mas, ainda que seja uma boa introdução, oscila muito entre uma abordagem e outra, entre sua produção textual e eventos que ele participara.

Publicado por Lucas Palma

Paulistano, desde que me lembro por gente fascinado pelas possibilidades do futuro, em games, filmes e seriados, herança paterna e materna. Para surpresa geral, ao final da juventude descobri fascínio também justamente pelo oposto, me graduando e mestrando em História, pela Universidade Federal de São Paulo. Sou autor de Palavras de Revolução e Guerra: Discursos da Imprensa Paulista em 1932.

Deixe um comentário