O projeto de nação do governo João Goulart: o Plano Trienal e as Reformas de Base (1961-1964) – Cássio Silva Moreira
Ano de Lançamento: 2014 – Minha Edição: 2014 – 349 páginas
João Goulart e seu governo, compostos por mentes das mais brilhantes que já existiram no Brasil, são um dos exemplos mais explícitos do “Silêncio dos Vencidos” – ou seja, exemplo que a História é escrita pelos vencedores de seus diversos conflitos. Sofrendo da mesma sina que o recente Governo Dilma, após ser derrubado pelo Golpe de 1964, a administração de Jango acabou sendo registrada como fraca e errática; um governo que não buscava nada, vivendo tão somente para se manter no poder.
O objetivo deste livro, originalmente uma tese de doutorado em economia, é contestar essa narrativa construída pela ditadura – para legitimar seu poder conquistado através do golpe – e demonstrar que o Governo Jango possuía, sim, objetivos e projetos muito bem definidos. Inclusive, suas diretrizes e iniciativas foram reaproveitadas pelos ditadores não muito tempo depois.
Para quem já teve minimamente um contato com bibliografia do Governo Jango, em especial relatos de seus ministros, sabe que essa versão dos militares era falsa; mas não só isso, muito provavelmente ele teve a presidência mais dedicada a pensar e transformar o país. As principais fontes utilizada pelo autor são, justamente, aquelas mais associadas a João Goulart: o Plano Trienal, que corresponderia ao planejamento econômico entre os anos de 1963 e 1965, e as Reformas de Base. Essas últimas não formam exatamente uma documentação; no texto, elas são reconstruídas a partir de uma série de decretos e discursos (públicos e parlamentares) do presidente.
Considerado um fracasso pelos contemporâneos, o Plano Trienal, elaborado por Celso Furtado – sim, aquele; provavelmente o maior economista brasileiro, o que já deveria colocar por terra a tese do “governo irracional” -, veio como uma das principais ações para quando Jango restabelecesse o presidencialismo e para remediar uma crise econômica caracterizada por uma inflação cada vez mais agressiva. Uma parte considerável do livro, quase 80 páginas, é dedicada a uma minuciosa reconstrução e detalhamento da economia brasileira na primeira metade da década de 60.
É a parte mais de economia desta tese verdadeiramente historiográfica; são inúmeros gráficos e tabelas dos mais diversos aspectos e índices: desde PIB e inflação, os mais básicos, passado por fluxo de pagamentos, valorização do salário mínimo, carga tributária, a até concentração fundiária e detalhamento das pautas de importações e exportações – impressionante trabalho de compilação de dados. As conclusões são várias e igualmente detalhadas; não cabendo no escopo da resenha. Entretanto, o autor aponta que Jango recebeu uma administração com uma degradação fiscal grave e uma economia muito fragilizada pelo avanço do capital estrangeiro. Consequências dos governos JK, que aumentou a dívida externa a patamares astronômicos, e Jânio, que, este sim errático, colocou em ação diversas políticas cambiais contraditórias, que contribuíram para deixar ainda mais débeis moeda e mercado interno.

O rótulo de insucesso atribuído ao Plano Trienal, alerta Cássio Moreira, é uma meia verdade. A iniciativa buscava estabilização monetária e desenvolvimento econômico simultaneamente, especialmente através de obras de infraestrutura e reformas institucionais. No primeiro aspecto, o governo não conseguiu frear a inflação; entretanto, uma série de medidas, ações e projetos com o segundo objetivo foram levados adiante. O autor detalha, por outras tantas dezenas de páginas, centenas de ações dos gabinetes de Jango em várias frentes: confecções de planos nacionais de telecomunicações, habitação, transportes, saúde e energia nuclear são apenas alguns dos exemplos do extenso trabalho realizado entre 1962 e 1964.
Uma das principais novidades do Governo de João Goulart era o desejo da institucionalização do Planejamento Econômico do governo federal; algo considerado absurdo pelos conservadores da época – e pelos os paleo-conservadores atuais; vale lembrar que o Ministério foi extinto durante o governo Bolsonaro.
Para fazer funcionar o Plano Trienal e suas inúmeras diretrizes, era imprescindível a realização das Reformas de Base. Bastante conhecidas e a marca mais célebre da presidência de Jango, passaram a ser a principal bandeira do governo; e conforme a crise política se agravava, mais o presidente decidiu tensionar e clamar pela sua realização em seus discursos. Seja porque elas eram condições indissociáveis de seu governo e programas para vencer a crise, seja porque elas tinham intenso apoio popular e fortaleciam sua base de apoio diante dos avanços da oposição. Esta última característica fora interpretada pelos golpistas como uma amostra de que elas não se tratavam muito mais que demagogia, o espantalho do populismo; não havia lógica ou racionalidade por trás das propostas de reforma.
No texto, o autor demonstra que era possível compreender, através dos discursos, ações e legislações que o governo realizou, que havia uma cronologia e um encadeamento para cada uma delas. Uma reforma política e eleitoral precederia todas, para conseguir a composição de um Congresso e Executivo que correspondessem de forma mais fiel à população; em seguida de dois grupos: as reformas processuais, para modernizar a máquina pública e permitir o financiamento das demais – a administrativa, fiscal ou tributária, bancária e a cambial -; e as reformas de conteúdo – agrária, urbana e educacional.
Não cabe nos limites desta resenha explicar cada uma das reformas; mas os seus anseios vão dos mais conhecidos, como a desconcentração fundiária na Reforma Agrária e o fim do sistema de cátedras na Reforma Universitária; a outros muito técnicos, como monopólio do câmbio através da Reforma Cambial e de incentivo direcionado de crédito na Reforma Bancária; e alguns extremamente avançados, como o controle no número de imóveis urbanos de um mesmo proprietário e construção de conjuntos residenciais na Reforma Urbana.
Para Jango, seus ministros e aliados, as Reformas de Base constituiriam um marco histórico brasileiro, tais como a Independência ou a Proclamação da República, um momento de refundação do país. Cássio Moreira ainda faz um estudo dos discursos do presidente, demonstrando como gradualmente as palavras de conciliação, mais presentes no início do governo, são substituídas ao final por outras de compromisso e emancipação – atreladas às reformas.

O estudo aqui presente é extremamente minucioso, há uma infinidade de dados, detalhamento de legislações e medidas em uma série de quadros e gráficos do governo de Jango – nos dois temas que dão o título, o Plano Trienal e as Reformas de Base, é o trabalho mais completo que já li, referência absoluta para quem deseja se aprofundar nessa discussão. Entretanto, é um livro acadêmico, escrito para outros pares e, portanto, uma leitura que não é para todos. Mas isso é um alerta que se restringe à densidade do texto e não à sua forma. Ele é acessível para quem tem um conhecimento básico do período Justamente por ser mais dedicado ao estudo de dados, não depende de citar nomes, eventos ou mesmo conceitos e debates historiográficos muito específicos. Há algumas teorias econômicas que podem te dar um nó na hora, mas o esforço didático do autor é grande.
As conclusões, como já havíamos adiantado, é que o Governo Jango tinha sim projetos e diretrizes muito bem definidos – e até mesmo copiados pelos militares -, o comportamento irregular se devia à intensa crise política do período. Recuar ou avançar em determinadas pautas ocorriam com frequência, mas os objetivos eram os mesmos – o próprio presidente demonstrava a mesma coerência em sua carreira: o compromisso com o trabalhismo e o nacional-desenvolvimentismo. O Golpe de 1964 era uma reação – já tentada em 1955 e 1961 – a esse Projeto de Nação, em nome do que ficou conhecido como desenvolvimento dependente-associado, colocado em prática na ditadura; o qual previa um país que crescesse a reboque das potências ocidentais, impulsionado por capitais e interesses estrangeiros.
O saldo, como tudo o que lemos sobre João Melchior Marques Goulart, é sempre um gosto amargo do país que poderíamos ter sido.
Excelente (5/5)
Um estudo muito detalhado, completo e minucioso dos dois principais de projetos de jango, o plano trienal e as reformas de base, de um ponto de vista econômico. Ainda consegue, Dentro das limitações de um texto acadêmico, ser muito acessível.
Herança Varguista: Não detalhei na resenha, mas o autor tem um cuidado bastante grande – e é como abre o livro – ao explicar as origens políticas de Jango e de seus projetos; no caso, sua estreita associação ao Varguismo e ao Trabalhismo. Não só ao lembrarmos que foi ministro do Trabalho de Vargas – conhecido pelo seu aumento de 100% do salário mínimo, e o pedido de demissão dele pelos militares, no “Manifesto dos Coronéis” -, mas João Goulart, em seus discursos, citava Vargas com frequência e sempre se manteve integrado aos quadros e orientações do partido.
Como as conclusões do livro indicam, o golpe de 64 foi a terceira e finalmente vitoriosa tentativa de acabar com o trabalhismo e seu ideal de Nacional-Desenvolvimentismo e uma “ideologia do desenvolvimento“. Nesse sentido, esse compromisso com a herança varguista – explorada pela oposição na época como eleitoreira – na realidade, depõe a favor de uma coerência e conformidade da trajetória e governo João Goulart, longe do irracionalismo e oportunismo propagado pelos vencedores.

II PND: O mais irônico é que uma série de iniciativas, projetos e medidas propostas pelo Governo de Jango, descritas no Plano Trienal e nas Reformas de Base, foram implementadas ao longo da ditadura militar. Em especial no Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento, do governo Geisel em 1974; indo de objetivos mais amplos como manter taxas de crescimento acima de 7% no PIB ou continuar o programa de substituição de exportações, a coisas muito específicas, como a construção da Usina de Itaipu (na época, proposta como Usina das Sete Quedas).
O que norteava os dois governos era ampliar a capacidade industrial do país a ponto de o Brasil dominar todas as pontas das cadeias produtivas. Apesar das estreitas similaridades, Deus está nos detalhes. Para o projeto Nacional-Desenvolvimentista e Trabalhista, encapado até o último fio de cabelo por Jango, o financiamento dessas grande obras e iniciativas seria possibilitado pelas Reformas de Base, como a tributária, cambial, administrativa e agrária; para fortalecer a moeda e o mercado interno. O crescimento do país era indissociável de uma distribuição de renda.
Sem fazer reformas no país, o caminho tomado pela ditadura, do desenvolvimento dependente-associado, financiou construções e políticas através do capital estrangeiro, gerando uma contração de dívida externa que estourou nos anos 80, seguida por uma inflação galopante; resultando em concentração de renda. Em 1974, o economista Edmar Bacha publicou um pequeno artigo em tom fábula ironizando o Milagre Econômico, chamando o Brasil de “Belíndia” – misturando uma parcela de população vivendo na Bélgica e outra, muito mais numerosa, vivendo na Índia.
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