Apontamentos sobre a “Teoria do Autoritarismo” – Florestan Fernandes
Ano lançamento: 1979 – Minha Edição: 2019 – 165 páginas
Vencido o século XX, com a promessa de felicidade absoluta ao vivenciarmos o que seria o Fim da História, os regimes autoritários passaram se encarados como coisas do passado, totalmente superados – na retórica citada de Fukuyama ou na Samuel Huntington, eles eram anomalias causadas pela Guerra Fria. A promessa não durou muito em vários aspectos, mas nesse tema, já avançados dentro do Século XXI, percebemos que para cair em novos governos ditatoriais não precisamos de muito.
Como explicar esse novo cenário de recrudescimento das democracias burgueses mesmo sem um inimigo em comum e atentando contra esses regimes? A presença Chinesa, apesar da propaganda, não tem a menor correspondência com a União Soviética. Ela é uma concorrente comercial do grupo da OTAN, não política. Para responder este questionamento, temos aqui um clássico justamente daquele período de quando a maior parte do mundo era governado por ditaduras.
Neste livro, publicado em 1979, temos a versão em texto para um curso preparado pelo sociólogo Florestan Fernandes a ser lecionado na graduação da PUC-SP (ele estava banido da USP após sua aposentadoria compulsória) naquele ano com o tema do título. A resposta para a pergunta que eu fiz, quase 50 anos depois, está muito clara desde o começo e é a principal reflexão da obra: a democracia burguesa já carrega dentro de si todos os elementos para implantação de regimes autoritários.
Uma vez que o Estado é uma criação burguesa, ele é moldado para proteger os interesses dessa classe. A autor faz uma importante reflexão da passagem da burguesia de revolucionária diante do feudalismo, para conservadora diante do capitalismo. Nesse sentido, suas instituições, conforme vencem a aristocracia, se adaptam e se flexibilizam para, paradoxalmente, se tornarem mais rígidas e aprimoradas em suas funções reacionárias para se manter no poder, se proteger do proletariado e cooptá-lo; em uma intensa tecno-burocratização.
Todo o aparelho repressivo que as ditaduras lançam mão, já existe no funcionamento democrático; toda a estrutura judiciário-policial existia antes do autoritarismo, continua durante o autoritarismo – e, sabemos hoje, que permanece após sua queda. No Brasil, após o final da ditadura, nunca houve reformas profundas nessas instituições, e muito menos nas Forças Armadas. Por exemplo, o DOI-CODI foi estabelecido a partir da Polícia Civil e da Inteligência do Exército, funcionado em fundos de delegacias que já estavam, e continuam, lá apenas “reorganizados” antes e depois; assim como o SNI foi transformado na ABIN.

Mas não apenas nesses aspectos mais explícitos que se opera o autoritarismo. Pensando na cooptação de partidos, sindicatos e reinvindicações trabalhistas, que entram nas pautas do parlamento e dos aparelhos burocráticos, mas algo que se estende bem em relação ao consumo, Florestan também indica como o aburguesamento da sociedade é uma forma de autoritarismo. Disseminação dos valores burgueses por toda a sociedade, seja na escola, na cultura ou no consumo, cria um credo praticamente religioso no qual imagina-se que não exista humanidade para fora do capitalismo, ser humano é compartilhar dos valores burgueses, como a propriedade privada – os próprios documentos que fundam o mundo burguês se nomeiam direitos naturais e direitos do homem.
Esse cenário, das ferramentas do autoritarismo estarem sempre embutidas na democracia, embora existente em todo o mundo capitalista, tende a se manifestar sempre de forma mais aguda na periferia. Nos estados imperialistas, o Estado capitalista precisa se equilibrar entre os interesses de diferentes frações burguesas (dos carteis e trustes globais à pequena burguesia) e da classe trabalhadora, suas “funções de legitimação”; e dessa forma seu autoritarismo “vaza” para a periferia; local onde o Estado capitalista sempre tem sua face mais dura.
Por sua vez, nos Estados periféricos, temos uma burguesia que é constantemente incapaz de dinamizar seus instrumentos de dominação – pois é pressionada tanto pelos interesses internacionais quanto pelos nacionais – e precisa lançar mão com maior frequência do autoritarismo, inclusive para tentar se modernizar. Para Florestan, a América Latina é o melhor lugar onde podemos verificar essa condição – o autor entra, ainda, nos pormenores também de movimentos como as tentativas de revolução burguesa atrasada ou os populismos, que são sempre acompanhadas de períodos autoritários.
Uma frase que chama a atenção é que esse cenário indica que o continente estaria “congelado na História”. Naquele período, no resto do terceiro mundo, estouravam revoluções após a descolonização europeia, mas por aqui, continuávamos patinando em um vai-e-vem autoritário, reciclando e reimplantando ditaduras e democracias. Nesse sentido, um importante conceito é do “cerco capitalista” na periferia, quanto mais as nações se rebelam, mais é, aos estados imperialistas, necessário patrocinar o recrudescer dos regimes: se havia uma revolução em escala mundial, também havia uma contrarrevolução em escala mundial.
Isso causava um reflexo profundo nos regimes socialistas, que frequentemente precisam se adaptar ao cerco. Seja no estabelecimento de políticas autoritárias ou nas políticas do Socialismo em um só país, que no desespero de sua sobrevivência, priorizou o desenvolvimento econômico e militar em suas nações, ao invés do avanço da revolução; mesmo quando não estavam mais restritos à União Soviética.
Claro que aqui já vemos as coisas não se desenrolaram como o sociólogo havia previsto, mas, mesmo errado, ele estava certo. Havia uma contrarrevolução em escala mundial, e que foi vitoriosa uma década depois – diferentemente do que ele esperava. Entretanto, o desfecho, paradoxalmente, tornou as reflexões desta obra mais certeiras e atuais. Justamente a flexibilidade da dominação burguesa, denunciada aqui, que permitia o fechamento, permitiu, também, as aberturas dos regimes mantendo os seus mesmos aparelhos tecno-burocráticos – e que podem ser acionados novamente.
Apesar do conteúdo se manter atual, a forma do texto nem tanto. É um livro dos anos 70 e mostra bem, especialmente por sua característica de ser uma versão escrita de curso; é uma leitura bem difícil. Parágrafos que se estendem por páginas e páginas são constante. Temos uma sucessão de apartes, que fariam sentido numa aula, mas que, em texto, confundem muito. Acabamos tendo dificuldades de entender como que chegamos naquele ponto; várias vezes tive que retornar pra reler, e, assim, entender onde começava e terminava uma frase ou até pra achar o verbo da oração no meio de tantas observações. E, ainda, referências a pensadores e pesquisadores mais antigos e obscuros – muitos sequer publicados em português (veja abaixo).
Mesmo eu terminando com a nota pessimista de que o autoritarismo burguês venceu, se resguardou e continua a espreita; a previsão do futuro pode estar errada, mas sobre a análise da realidade, Florestan está certo e avisava:
“Ao que parece, alcançamos um limiar no qual o certo capitalista se torna anti-história, condena-se a produzir efeitos negativos e, a largo prazo, compele o capitalismo e o imperialismo a ficarem presos nas malhas de sua contrarrevolução, ao paroxismo de uma destruição que se converte em autodestruição“.
Cada vez mais a contradições capitalistas se tornam evidentes e mais a burguesia terá dificuldades de pensar além da sua própria subsistência e reprodução – assim como a aristocracia o fazia antes de ser derrubada pela própria. A grande questão é que nós não podemos cair nessa mesma armadilha.
Muito Bom (4/5)
Mesmo errando em suas previsões, a análise, paradoxalmente, se tornou mais atual e é uma excelente contribuição para entendermos o fantasma sempre presente do autoritarismo. Entretanto, é uma leitura muito difícil pelo formato do texto.
Laissez-Faire: um dos grandes sofismas referentes à capacidade do Estado burguês de ser autoritário quando é necessário situa-se nas análises da Era dos Impérios. Normalmente associado a um capitalismo livre, guiado pelo lema laissez-faire, laissez-passer, sem regulações ao capital; o controle de vastos impérios coloniais, que correspondiam a muitas vezes o próprio território da metrópole, lançava mão de um profundo autoritarismo e repressão – muito distante daquela visão quase bucólica de um liberalismo em essência.
Totalitarismos do Dinheiro e da Informação: conceitos elaborados por Milton Santos, dentro da ideia maior da Globalização Perversa, dialogam muito bem com os de Florestan Fernandes por aqui. Como o geógrafo indica, nos tempos contemporâneos, a força desses dois itens – as finanças e as telecomunicações – simplesmente impedem qualquer outra forma de pensar que entre em conflito com eles. Nada que gere prejuízo deliberado ou que não seja confrontado com dados – que, por sua vez, vão aferir esse prejuízo – é permitido como política – e o Estado burguês usará sempre do autoritarismo mais necessário para poder emplacar esses dois totalitarismos.
Por uma outra Globalização
Longe de integrar a humanidade e cumprir sua promessa, a Globalização Perversa, como Milton Santos nomeia, revelou outros problemas e contradições gravíssimas.
Social Liberalismo: não é exatamente o que o autor está preocupado, claro, pois esse corrente sequer existia na época da escrita, mas acredito que estaria alinhado à reflexão de como o aburguesamento da sociedade também ocorre através da conquista de direitos civis e políticos, o que hoje chamamos de Social-Liberalismo.
Programas que garantem os direitos através da iniciativa privada, tais como Minha Casa, Minha Vida; ou sistema de vouchers ou as OS (organizações sociais) para educação ou saúde fazem esse movimento. O direito à moradia estaria atrelado a você ir lá e “comprar” a sua casa escolhida, como um bom burguês, e não a criação que conjuntos habitacionais ou bairros planejados – que são soluções longe de serem perfeitas, mas permitiam mais planejamento urbano.
Bibliografia estrangeira: uma das coisas que mais me chamou a atenção no livro é a quantidade de referências citadas por Florestan durante o curso que não possuem edição brasileira – e mesmo em português. Outros tempos, seja pela ditadura restringindo as publicações no país; pelo elitismo da academia à época ou mesmo o pouco alcance do ensino e pesquisa universitário brasileiro refletindo em um mercado editorial pequeno.
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