O Lulismo em Crise

O Lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016) – André Singer

Ano de Lançamento: 2018 – Minha Edição: 2019 – 389 páginas


Um dado que hoje é difícil de lembrar que foi verdadeiro: Dilma foi a presidente com maior avaliação pessoal da história do país; em 2012 ela, como governante, era aprovada por 79% da população. Seu início de mandato foi também o mais bem quisto pela população, com 47% de aprovação em março de 2011. O pico de avaliação de seu governo, em março de 2013, foi de 65%, superado apenas por Lula e seus 83% em dezembro de 2010. Em dois anos essa cifra se inverteu, a reprovação foi a 71%. O desfecho já conhecemos: o golpe de 2016.

Explicar esse fenômeno será alvo de debates pelas próximas décadas, mas o esforço de André Singer, talvez o principal analista contemporâneo do Lulismo, sem dúvida é dos mais relevantes. Em 2012, ele lançou Os Sentidos do Lulismo, apontando que o PT se encaminhava para criar no Brasil o “sonho rooseveltiano“; a criação de um país de classe média, no qual as políticas lulistas estariam tão enraizadas que a oposição não as conseguiriam desfazer sem cometer um suicídio político tamanha a popularidade delas.

Ao tentar acentuá-las, foi a situação que cometeu tal ato.

Os ensaios

Focado exclusivamente no Governo Dilma, o livro tem uma estrutura muito bem delimitada e muito didática, dividido em duas partes: uma referente ao primeiro primeiro mantado e outra ao impeachment – há um interlúdio entre os dois, ainda. No começo, Singer apresenta que a presidenta tentou dois ensaios que, apesar de ensaios, se mostraram muito ousados e custaram seu governo; um desenvolvimentista e outro republicano.

Liderada por Guido Mantega, a política econômica abriu um conflito, se não violento, declarado, ao que comumente é chamado de rentismo. Ações decisivas na tentativa de deslocar os investimentos privados da renda em finanças para a produção, através de um ataque aos juros e ao spread bancário, utilizando como balizas os bancos públicos – BB e Caixa. Apesar de um início promissor; em 2012 os industriais (teoricamente os que seriam mais beneficiados) abandonam o barco, e o governo se vê fazendo essa custosa política para ninguém.

Singer aponta vários motivos que ajudam a explicar a aparente contradição do empresariado: o fato dos industriais também terem interesse na financeirização; fatores ideológicos; a interferência estrangeira e, em especial, a luta de classes. Conforme também aponta Laura Carvalho, as políticas de Lula e Dilma aumentaram os salários, em especial dos serviços, pressionando o lucro da burguesia em todos os aspectos – ainda mais se levarmos em conta correntes econômicas que indicam que o setor industrial é aquele que levanta os salários de um país. Assim, vendo o lucro na produção e nos serviços diminuindo com salários mais elevados, os empresários optam pelo investimento no rentismo puro e se opõem ao governo.

No ensaio republicano; Dilma tenta ficar cada vez menos dependente do PMDB e do centrão; seguidas vezes buscou fazer nomeações mais “justas” aos cargos no governo e nas estatais, recusando nomes indicados, em especial, pelo “PMDB da Câmara”, mais reacionário e hostil ao PT, o que era chamado de “faxina de Dilma” na mídia da época. Ao mesmo tempo, a presidenta permitia mais o desempenho independente do Judiciário e da Polícia Federal. Políticas quase que autoexplicativas para a queda do governo.

Ainda assim, Dilma crescia em popularidade e aprovação até um momento decisivo: as manifestações de Junho de 2013. O autor tem uma análise muito sóbria daqueles eventos, apoiada em diversos dados, apontando para um momento de cruzamento de ideologias e interesses: dois blocos descontentes com o contexto político, não com o governo em um primeiro momento, se encontraram – um popular e outro médio – formaram um movimento extremamente heterogêneo. Através da força das oposições formadas contra os ensaios de Dilma, alguém venceu e resinificou completamente o ocorrido.

Não há toa, rapidamente as ondas de protestos que passaram a monopolizar a crítica ao governo eram referentes aos “gastos públicos”, usando a Copa do Mundo como bode expiatório, e os movimentos liberais, anti-intervencionistas dominaram a retórica da época em resposta ao ensaio desenvolvimentista. Nesse caldo que nascem MBL ou o submundo do Anarco Capitalismo no Brasil. Paralelamente, as nomeações de Dilma eram severamente atacadas; também não era coincidência que Graça Foster, funcionária de carreira Petrobrás, com uma história de vida comovente, na qual trabalhou como catadora de lixo, causou tanto alvoroço e foi considerada um dos grandes problemas do “petrolão” – sua indicação foi feita preterindo um nome de um amigo de Eduardo Cunha.

O zigue zague

Já desde o período posterior às manifestações de Junho, mas como característica mais acentuada no segundo mandato, o Governo Dilma esteve em um profundo zigue-zague. Atacado de todos os lados, ora buscava atender demandas da esquerda, ora da direita; ora buscava acentuar investimentos públicos, ora realizar ajuste fiscal; mudando de posição conforme as crises surgiam. Esse balé invertido, na qual ela tentou dançar com todo mundo, os passos foram todos desastrados, e teve como efeito enfraquecer Dilma em todas as alas; eleitorado, classes dominantes, políticos….

Uma das principais fontes de ataque era a Operação Lava Jato, um fruto do ensaio republicano, que permitiu a livre ação dos poder judiciário e da polícia contra personalidades importantes do mundo da política. Partidária de métodos de exceção jurídicos – por palavras dos próprios integrantes – consolidou-se como um Partido da Justiça, inferindo diariamente nas eleições, votações, debates; em todos os aspectos cotidianos da política. Não coincidentemente, sugere o autor, a “República de Curitiba” surgiu no Paraná, solo de tucanato, e era formada por integrantes ligados ao PSBD paranaense.

O texto faz uma sagaz analogia da República de Curitiba com a República do Galeão. Em agosto de 1954, após a morte do Major Rubens Vaz, no famigerado atentado da Rua Tonelero contra Carlos Lacerda, os militares da aeronáutica, em suposta solidariedade ao colega assassinado, decidiram por conta própria assumir a investigação de sua morte, sediados na Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro. O grupo prendeu, sem a autoridade competente, Gregório Fortunato, guarda-costas de Vargas, acusado da morte de Vaz, na base aérea (imagem abaixo); e para lá desejava levar também o presidente. Após não ter o apoio do ministro da guerra nem da guarda imediata de Vargas para a realização do golpe de estado, a força do grupo arrefeceu – não a crise, que se acentuou, e levou ao suicídio de Getúlio. Aqui, Singer aponta que a República do Galeão durou cerca de 20 dias, já de Curitiba, 6 anos.

Singer faz uma detalhadíssima retrospectiva, quase que diária, de como a crise política evoluiu para o golpe em 2016. Lançado pelo candidato derrotado em 2014, Aécio Neves, o golpismo esteve ao redor do PSDB em um primeiro momento, mas o tucanato se dividia em três alas de três presidenciáveis com interesses diferentes; Aécio, mais imediatista, Alckmin, com pensamento de longo prazo, e Serra no meio termo. O mineiro desejava assumir o governo de qualquer forma era favorável a um impeachment; o então governador de São Paulo olhava a eleição seguinte, estava contrário… a força decisiva seria do antigo ministro da saúde.

Também dividido, estava o PMDB; uma ala liderada por Cunha, na Câmara, mais combativa e a mais atacada pela “faxina” de Dilma durante o ensaio republicano, e outra por Renan Calheiros, no Senado, mais consolidada e estável, que não desejava combater o governo. No meio, Michel Temer, articulava entre os dois grupos, e era também um antigo conhecido do tucanato, fazendo aquela que o autor aponta como a aliança decisiva: Serra e Temer, velhos correligionários durante o governo Franco Montoro em São Paulo.

Há outros personagens interessantes, como Gilberto Kassab, ministro de Dilma, e de Temer, que pretendia criar outro partido a partir da crise, ou mesmo Paulo Skaf, presidente da FIESP e candidato pelo Partido Socialista ao governo do Estado simultaneamente. Mas os protagonistas são, sem dúvida, os dois nomes anteriores, que articularam a união de PSDB e PMDB pela destituição da presidenta e, mais importante, a união das principais classes dominantes do país. Levando o resto dos partidos juntos.

O momento chave parece ter sido a condução coercitiva de Lula, indica Singer, no início de março de 2016. Uma última reforma ministerial de Dilma, incluindo nomes controversos ao gabinete; a integração de Lula ao Governo; falas de ministros e mesmo de empresários, relativos a um acordo envolvendo novas reformas da previdência e de gastos; sintomas que indicavam uma alternativa final de conciliação até as próximas eleições – implodida pela Lava Jato.

Apesar de intimidadora devido sua densidade, a obra é de leitura bastante didática e agradável. Jornalista de formação, o texto de Singer brilha nessas retrospectivas detalhadas dos últimos anos do Governo Dilma e da profunda crise política. E, sem prejuízo, consegue intercalar o jornalismo à análise política de forma muito orgânica e fluida – particularmente acho textos de Ciência Política extremamente truncados, o que não é o caso aqui.

O debate sobre o Golpe de 2016 ainda está longe de terminar, ainda mais diante do terceiro Governo Lula e a nova tentativa de reviver o Lulismo, mas este livro, mesmo sendo um dos primeiros passos, é uma das obras mais fundamentais para entendermos essas feridas sequer cicatrizadas de nosso passado recente.

Excelente (5/5)

escrito logo depois do golpe de 2016, o livro é uma análise densa e uma detalhada retrospectiva (praticamente contemporÊanea) do Governo Dilma e suas sucessivas crises políticas; com um belo misto de ciência política e jornalismo.

Mudança de Regime – Os eventos do Governo Temer, dono de pujantes 3% de popularidade, não são o foco do livro, mas Singer aponta – conforme já era percebido na época: o que se operava não era uma simples mudança de Governo, mas sim uma Mudança de Regime. A Ponte para o Futuro e o Teto de Gastos, que buscavam tornar a Constituição de 1988 incompatível com qualquer governo, se aliavam, em especial, o Parlamentarismo, que impediria o Partido Popular (ver abaixo) de disputar o poder. Uma bandeira particular de José Serra.

Lula – Um personagem importante mas ao mesmo tempo marginal no livro é a de Luís Inácio. Dilma tentou implantar sua versão do Lulismo, através de uma desenvolvimento industrial e uma redução de clientelismo. Não são diferenças pequenas; envolvia tencionar muito o reformismo fraco da prática política do PT. Soma-se a isso que a relação entre os dois presidentes do PT não foi tão próxima durante o Governo Dilma, Lula passou por uma severa condição médica, e a presidenta buscava sua forma de atuar distante do antecessor.

Conforme as crises iam se avolumando, o ex-presidente era procurado por outros políticos, membros do governo e do partido buscando interferência dele no governo. Assim como ele próprio cutucava Dilma em diversos episódios. Gradualmente, ele foi sendo cada vez mais integrado à equipe do governo e foi chamado para o ministério de forma a reverter o rompimento do PT com o PMDB – impedido pela Lava Jato (ver acima). De acordo com o autor; o racha com Cunha – originado em uma eleição para a presidência da Câmara – foi o momento de menor força de Lula dentro do partido.

Três Partidos – Uma tese central de Singer, que optei por deslocar da resenha de modo a ficar mais clara é a dos três partidos históricos que o Brasil teria desde 1945: o partido do interior, o partido da classe média e o partido da massa ou popular; representando centro, direita e esquerda. Originalmente personificados na tríade PSD, UDN e PTB do período até 1964. Isso não é estanque, claro; a proeminência do PTB, por exemplo, foi ocasionada, pela impossibilidade de consolidação do PCB – colocado na ilegalidade pelo trio, incluindo os trabalhistas. Da mesma forma que o PT demoliu o PDT e incorporou o PCdoB 30 anos depois.

Mesmo durante a ditadura, o movimento desses grupos políticos era observado dentro do MDB, que em algum momento concentrou uma trajetória parecida com a UDN original – que congregava membros de “esquerda” desconfiados do varguismo – mas, após receber o influxo da ARENA e da fundação do PT, acabou se transformando na versão atualizada do Partido do Interior.

Por sua vez, também esvaziado de atores e eleitores que estavam descontentes e desconfiados com o arenoso PMDB, surge o PSDB, a versão contemporânea do partido da classe média – curiosamente, também uma dissidência de São Paulo, como o PSP dos anos 40 – e também considerado esquerdista em sua origem.

Diante da popularidade do partido da massa (PT/PTB), o partido do Interior (PSD/PMDB) tende a apoiá-lo em seus projetos até o momento em que as tensões de classe radicalizam o partido da classe média (UDN/PSDB) contra os avanços populares atacando o regime democrático, pois neste campo a classe média tem dificuldades de vencer eleições. Esse deslocamento do Partido do Interior para defender seus interesses burgueses junto com o Partido da Classe Média sela a aliança golpista.

O parlamentarismo, de acordo com Singer, seria uma forma de acabar com esse tripé partidário pois nas eleições legislativas o partido da classe média consegue vencer o partido popular.


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Publicado por Lucas Palma

Paulistano, desde que me lembro por gente fascinado pelas possibilidades do futuro, em games, filmes e seriados, herança paterna e materna. Para surpresa geral, ao final da juventude descobri fascínio também justamente pelo oposto, me graduando e mestrando em História, pela Universidade Federal de São Paulo. Sou autor de Palavras de Revolução e Guerra: Discursos da Imprensa Paulista em 1932.

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