Os sentidos do Lulismo

Os sentidos do Lulismo: Reforma gradual e pacto conservador – André Singer

Ano de Lançamento: 2012 – Minha edição: 2019 – 276 páginas


Pela primeira vez, ou melhor, “nunca antes na história desde país“, um governo de esquerda foi reeleito no Brasil, e reeleito mais uma vez, e reeleito de novo… um fenômeno único na história nacional. Apesar de candidaturas que se posicionavam à esquerda de outras concorrentes, o único presidente eleito com pautas, de fato, ligadas aos movimentos e reformas sociais no Brasil havia sido João Goulart – e eleito vice.

No mesmo ano da eleição de Lula, 2002, o jornalista André Singer – que viria a ocupar o cargo de secretário de imprensa da campanha e posteriormente da presidência – havia lançado um polêmico estudo onde apontava que, nas eleições de 1989 e 1994, quanto mais pobre o eleitor, mais identificado com a direita ele o era. Ninguém melhor que o próprio para tentar explicar como o Partido dos Trabalhadores conseguira reverter este quadro.

Ficamos com uma visão tão consolidada de que o voto no PT provém dos “rincões do Brasil”, dos nordestinos ou da “nova classe C”, que é difícil relembrar que nem sempre foi assim. Nos dados apresentados por Singer, durante anos 90 a porcentagem de preferência pelo partido aumentava conforme a renda: em 96 e 98, apenas 8% da população que recebia menos de 2 salários mínimos declarava preferência pelo partido; enquanto esse índice aumentava até 19% acima de 10 salários mínimos. No ano da vitória; em 2002, estes números eram de 15% e 32% respectivamente; e, em 2010, 22% e 24% – com destaque para o crescimento da preferência de quem recebe entre 2 e 5 salários mínimos; 11% (96), 23% (2002) e 27% (2010).

Estes são apenas alguns dos dados extremamente impactantes que Singer nos revela. Outros que poderíamos citar são: a proporção de eleitores do PT que se consideram direitistas aumentou durante o governo Lula; de 20% em 2002 até 35% em 2010. Sobre o passado, ele ainda resgata que em pesquisa de 1990, quanto mais pobre o entrevistando, mais ele concordava com o uso de força policial contra grevistas: 41% de quem recebia até 2 SM e apenas 8% de quem recebia mais de 20 SM. Ou ainda, como em 1993 uma proporção maior de eleitores que se consideravam direitistas (68%) acreditavam que o Estado deveria intervir na economia, enquanto um pouco menos dos esquerdistas (59%) compartilhavam desse pensamento.

Tudo isso para demonstrar como houve uma alteração profunda no eleitorado a partir da Redemocratização, e, em especial, depois do início da Era Petista. Nesse sentido, este livro não é exatamente uma análise do Governo Lula, e sim uma análise do eleitorado e dos simpatizantes petistas durante o governo de Luís Inácio.

As políticas da administração petista tiveram como efeito a “retirada de milhões da miséria” e a criação da “Nova Classe Média”. Para além de debater as características de cada ponto, quais poderiam ser o impacto dessas transformações na disputa política brasileira? Segundo Singer, em linhas gerais, o governo Lula conquistou o que os marxistas chamariam de subproletariado. São trabalhadores em situação tão fragilizada que sequer conseguem ser explorados de forma “moderna” pelo capitalismo: trabalhadores sazonais, informais, desalentados, inválidos… e, especialmente, ignorados até o governo petista. Pela primeira vez houve alteração no volume dessa fração de classe na história do país; até Lula, o número sempre ficou próximo da metade da população economicamente ativa.

Um dos momentos mais importantes do “pacto conservador” foi colocar os programas sociais controlados nos governos municipais e estaduais, fortalecendo (e dividindo os ganhos políticos) com autoridades locais – originalmente o Fome Zero era administrado por comitês populares.

Segundo os dados recolhidos, esse é um eleitorado normalmente identificado com a direita (antiga fonte de votos do PFL e PMDB) e foi conquistado por Lula. Feito realizado através de programas de transferência de renda, de ampliação de crédito, e valorização do salário mínimo – um verdadeiro tripé da popularidade do Governo Petista. Mas popularidade não apenas conquistada a partir da melhoria das suas “condições materiais”. Também sem ameaçar a ordem vigente – algo importante para cidadãos de orientação conservadora.

Esse conservadorismo do subproletariado tem uma explicação teórica muito interessante: diferentemente do proletariado, que teria um projeto de sociedade próprio – o Comunismo, no limite; o controle dos meios de produção pelos trabalhadores – o subproletariado é tão marginalizado que não possui anseios de transformação social, ele ainda apenas deseja integrá-la a partir da exploração adequada – e na prática muitas vezes isso significa consumir.

Ao transferir sua base eleitoral do proletariado ao subproletariado, que não deseja romper com o modo de produção, o PT transformou o cenário eleitoral brasileiro. A disputa entre direita e esquerda teria sida substituída por uma disputa entre ricos e pobres. Apesar de, para um esquerdista soar assim, isso não é um sinônimo. Essa transferência se operou através de uma despolitização; os benefícios foram todos operacionalizados pelo Estado e o discurso do governo foi sempre de união de classes, todo mundo estava ganhando. Os pobres queriam não substituir os ricos, mas ocupar os mesmos espaços que eles; ao mesmo tempo que os ricos se incomodavam profundamente com a presença dos pobres em seus espaços.

E tudo através de uma indiscutível personalização das políticas através da figura de Lula o que, por sua vez, não tem absolutamente nada a ver com autoritarismo, é bom pontuar. Nesse sentido, Singer caracterizou toda essa transformação de Lulismo. Mas e o Partido dos Trabalhadores nisso tudo? De acordo com o autor, o PT tem duas “almas”, a do Sion e a do Anhembi (veja abaixo), a de sua origem, de orientação revolucionária, e a da Carta aos Brasileiros, que passou a dominar a agremiação durante o período dos governos presidenciais.

Provavelmente onde Singer mais escorrega, e o único momento em que análise fica um pouco mais chapa branca, é em mostrar como essas duas almas convivem desde então. Ainda que disputem os rumos do partido, o autor procura demonstrar que a alma do Anhembi tem o mesmo objetivo da alma do Sion, apenas aplicando suas transformações de forma extremamente lenta, por isso um reformismo fraco. Esta ideia não é algo insano, acho que está correta em um âmbito mais geral, inclusive para além dos pontos abordados no livro, mas a corda é esticada demais em alguns momentos – especialmente no referente à reforma tributária que nunca houve.

Ainda assim, não se deixe enganar pela origem interna do autor. O saldo é uma análise valiosíssima deste primeiro momento, do auge, do Governo Petista. Através de uma leitura muito fluida – apesar de muitos dados, o texto é sempre claro e agradável – o autor faz um importante diagnóstico da popularidade do partido e esclarece muita coisa que mesmo nós vivendo todo o período, não era possível perceber (ou até apagamos completamente). Ainda que muita água tenha passado pelo moinho, e o país deu um cavalo de pau, a análise de Singer me parece ainda muito precisa: boa parte da crise que se estende até hoje no Brasil é possível de se entender a partir das reflexões deste livro.

Muito Bom (4/5)

Um livro fundamental para se entender a história recente do país. Com muitos dados, mas sem deixar de ser um texto fluido, o autor demonstra como houve a transformação decisiva do eleitorado brasileiro que permitiu eleição quatro vezes consecutivas do partido dos trabalhadores, a mesmo tempo que fornece instrumentos para entender a crise política que ainda viria a atingir o país.

Miséria e Pobreza – Apesar de serem tratados no discurso político brasileiro como sinônimos, estes dois conceitos sócio-econômicos não são a mesma coisa. São vários os índices e metodologias internacionais e nacionais para tentar estudar e medir o tamanho dessas fatias da população.

Por exemplo, a “linha da pobreza” internacional, o índice mais conhecido, é a renda diária de 2 dólares por dia. Outra forma é medir, ainda em renda, através do acesso ao alimento: a “pobreza absoluta” para o IPEA é rendimento mensal inferior ao preço de uma cesta básica (de acordo com os critérios da FAO/ONU), e “pobreza extrema” (indigência) é uma renda inferior à metade do custo de uma alimentação mínima. Nesses casos, o Governo Lula reduziu a pobreza absoluta de 36% para 23%, e a extrema de 15% para 8%.

Slogan do Governo Dilma

Outros autores poderiam, por exemplo, sugerem medir a pobreza através do acesso aos direitos dos cidadãos; como saúde, saneamento básico, educação e etc. Entretanto, Singer aponta que, independente disso, a importante chave para entender o fenômeno da popularidade de Lula e do PT está em entender as diferentes camadas de renda dentro da população atingida pela pobreza.

Sion e Anhembi – Duas localidades de São Paulo; o Colégio Sion, no bairro de Higienópolis, na região central, foi onde o PT foi fundado. Já o Anhembi, centro de convenções na Zona Norte, foi palco da convenção partidária que ratificou a Carta aos Brasileiros.

Direita desnorteada– Uma importante reflexão do autor é como a direita nacional assistiu e se acomodou à transformação empreendida pelo PT durante sua década. Em primeiro lugar, o Lulismo solapou as bases eleitorais populares da direita; tradicionalmente associadas ao que chamaríamos de coronelismo, na prática, os votos no PMDB, PFL, PP e afins nos rincões do país.

Enquanto isso, o PSDB e seus partidos satélites buscaram capitalizar em cima da classe média urbana, um reduto anteriormente simpático ao PT, perdido devido à brutal cobertura da mídia sobre escândalos de corrupção direcionada ao partido. Ainda assim, Singer identificava a altura das eleições presidenciais de 2010 como José Serra falava, por exemplo, em ampliar o Bolsa Família caso fosse eleito. Nesse sentido, a direita precisou se adaptar ao discurso lulista ainda que somente no âmbito eleitoral.

Muita água rolou de lá para cá e o autor continuou suas análises em outros livros, entretanto, isso é uma base importante para entender como a derrota do projeto petista precisou vir de um golpe e posterior direta fascistóide.

Otimismo – Escrito entre 2010 e 2012, o livro não deixa de ter um tom otimista. Não deve ser confundido com falta de crítica; acredito que pela resenha, tenha demonstrado que Singer tem distanciamento suficiente para analisar o fenômeno. Entretanto, o autor acredita que essa transformação de grande números de brasileiros subproletários em proletários, permitiria então, o incremento a médio prazo da classe trabalhadora que deseje lutar pelo poder.

Da mesma forma, aponta que a taxa de redução da pobreza no Brasil ainda que pareça lenta, ela não seria em uma perspectiva histórica e comparativa. No índice Gini, a redução da desigualdade (que também não é exatamente a mesma coisa, usando apenas como referência) brasileira caminhava a redução de 0,7 ao ano durante o Governo Lula. No pós-guerra, momento da implantação do Estado de Bem Estar Social, no Reino Unido e Estados Unidos a redução anual era de 0,5 e 0,6 respectivamente.

A grande dificuldade do brasileira é o ponto de partida; como o trabalho a ser feito é muito maior, qualquer esforço que não seja drástico será percebido como lento. Mas aí fica também a contradição, nunca será feito esse esforço mais drástico? Quanto tempo precisaríamos de reformismo lento para atingirmos patamares mínimos. E, hoje, olhando do futuro, bastou um governo da direita para retroceder em tudo alcançado.

Contrapartidas– Singer também se dedica a apontar os limites do reformismo franco, o que no caso seria o pacto conservador. Numa das contradições mais exploradas do Governo PT, o Lulismo, para evitar o confronto com o capital, permitiu a continuidade da desindustrialização do país, já que o aquecimento do mercado interno muito se deveu a expansão do crédito e ao rolamento da dívida pública. Nesse sentido, fortaleceu demais um setor rentista e de serviços que, não por acaso, engrossou as fileiras da oposição a partir de 2013.

Enquanto isso, muito do otimismo do texto com relação a futuras lutas operárias viria da condição de proteção das leis trabalhistas. Tornando-se proletariado, os ex-miseráveis estariam minimamente estáveis financeira e socialmente, aptos a terem seus anseios transformadores. Nesse sentido, vemos a importância da Reforma Trabalhista do Governo Temer, uma das primeiras medidas após o golpe de 2016.

MBL, Igrejas, Redes Sociais e Golpes – Numa conclusão minha, observando 10 anos depois dessas primeiras impressões de Singer, logo após o final do Governo Lula. Depondo a favor da análise dele, todo o ocorrido desde então parece-me encaixar bem com o apontado pelo autor. Não havia outra forma das forças reacionárias no Brasil reverterem os avanços sócio-econômicos empreendidos pelo PT em seus 14 anos de governo, senão através de uma ruptura (branca) e nos moldes que ela ocorreu.

Seguindo o “curso natural”, após a conquista do subproletariado e sua lenta emancipação em proletariado, a tendência dos eleitores seria se identificar mais com o PT ou com partidos que respondessem seus anseios. Nesse sentido, a direita nacional (como classe, não partidária) atuou justamente nos pontos cegos do Reformismo Fraco, enalteceram as visões de sucessos individuais daquelas conquistas (teologia da prosperidade, empreendedorismo) e cresceram na despolitização. Componentes importantes das campanhas pró-impeachment e do bolsonarismo.


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Publicado por Lucas Palma

Paulistano, desde que me lembro por gente fascinado pelas possibilidades do futuro, em games, filmes e seriados, herança paterna e materna. Para surpresa geral, ao final da juventude descobri fascínio também justamente pelo oposto, me graduando e mestrando em História, pela Universidade Federal de São Paulo. Sou autor de Palavras de Revolução e Guerra: Discursos da Imprensa Paulista em 1932.

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