Resultado de uma grande frente de pesquisa, iniciada pelo podcast de Ivan Mizanzuk, no começo deste 2021 a série documental do Globoplay O Caso Evandro foi um excelente exemplar do gênero. Pelo menos em seus oito primeiros capítulos.
Apesar de contar com nove episódios, apenas sete dele fazem parte “do corpo do texto”. Após temos um apêndice e um epílogo. Um é o capítulo extra, dedicado ao Caso Leandro, sobre o desaparecimento de Leandro Bossi, meses antes também em Guaratuba e relacionado diversas vezes com o o crime principal; e o seguinte é intitulado “Consequências“. Gravado, de acordo com a própria exibição, semanas depois do lançamento completo dos capítulos anteriores.
Com muitas pitadas de auto exaltação, este epílogo explora a repercussão da produção no referente a novas informações que surgiram sobre o Caso Evandro com a revisitação nacional à tragédia passada em 1992. Há três grandes destaques para esse episódio que acabam estruturando a narrativa, e são três grandes escorregadas que colocam toda a produção em xeque, com várias decisões questionáveis do ponto de vista ético e jornalístico. Sem deixar de ser muito irônico, já que boa parte do seriado até então era uma crítica à cobertura da imprensa dos anos noventa.
Para uma resenha sobre o livro veja este post:
O Caso Evandro
O assassinato e mutilação do corpo de uma criança numa pequena cidade do pobre litoral paranaense se tornou um dos casos policiais mais bizarros do passado recente no Brasil, sendo apelidado de As Bruxas de Guaratuba.
O Serial Killer
O primeiro destaque seria a hipótese do jornalista Ivan Mizanzuk sobre a atuação de um serial killer na região da cidade durante o início dos anos 90, e ele seria o responsável pelo desaparecimento das crianças naquele período. Nada sobre isso foi apontado em nenhum dos outros capítulos. A hipótese, que está no livro e no podcast, fica ausente do seriado e é levantada apenas neste epílogo a luz do reaparecimento de Alex, uma das crianças desaparecidas do período (em dezembro de 1991).
De forma muito apressada, há alguns depoimentos de Alex tomados à distância em chamada de internet, que careceram de maior apuração, e permanecem completamente soltos. Há algumas entradas de uma policial, mas a história toda é contada a partir de falas dele, bastante incompletas (e nem podemos exigir coerência, já que ele foi vítima de uma brutal violência) e que nos permite apenas entender muito pouco tudo o que houve.

Sabemos que Alex foi raptado e que seu raptor foi preso em outro momento por um outro crime; entretanto, nada muito mais que isso é explicado. Eles viajaram pelo país e de alguma forma a criança escapou da custódia do sequestrador e chegou às mãos da polícia. Não fica claro quando isso ocorreu, e muito menos as motivações daquele homem; em falas desencontradas, não é possível sequer entender o que houve nem ter uma imagem mínima de quem havia sido o responsável.
A narrativa do seriado, ao optar por apresentar a hipótese apenas agora, dá a entender que esse raptor seria o possível serial killer cogitado Mizanzuk – que já existia e fui construída independentemente desse novo elemento e suprimida da série, importante lembrar – mas sem absolutamente nenhuma investigação. Toma-se alguns depoimentos, sem confrontá-los com mais nada (apresentar trechos do inquérito, testemunhas, notícias do período, policiais envolvidos, para citar alguns exemplos) e fica para o espectador confiar ou não no pouco que foi apresentado.
Ironicamente, em metodologia, não é muito diferente da postura da imprensa em 1992 que aceitou as confissões dos acusados de imediato.
Isso a Globo não mostra
Toda produção é produto de seu tempo. Ainda que falando sobre o passado, ela é uma comunicação do presente para o presente.
Constante desde o livro, um dos principais focos da narrativa é a denúncia das torturas sofridas por todos os acusados logo após sua prisão. O peso dessa violação, para o autor é tão grande que significa a inocência de todos os envolvidos. No seriado, isso é expandido e temos falas de sociólogos e um episódio especial e muito comovente dos réus escutando fitas que gravavam, em áudio, alguns sons de suas violações.
O governador do Paraná durante os eventos principais do caso era Roberto Requião, na época do PMDB, entre 1990 e 1994. Personagem marginal da investigação de Mizanzuk, que, sobre o governo do Estado, dedica mais atenção ao secretário de segurança pública, enquanto o chefe do executivo é figura um pouco mais frequente do seriado, sendo mencionado em vários episódios. Ao final da série, no episódio 7, temos a informação que Requião não retornou a nenhum contato feito através de sua assessoria.

Neste epílogo, Mizanzuk reitera que tentou contato com Requião e não obteve sucesso. Enquanto isso, como surpresa do episódio, temos realmente a aparição do ex-governador; mas Requião informa que foi procurado e sim e conversou com “alguém da Globo”, mas respondeu que não desejava participar em produções da emissora. Há uma confusão editorial, grave ao meu ver, aqui, pois foram dois contatos diferentes, um de Ivan para o podcast, e outro da produção da série, aqui são tratados como a mesma coisa. Mizanzuk fez uma longa explicação sobre o tema, que você pode conferir aqui.
Aproveitando de uma resposta escrota de Requião – que ele “tinha mais o que fazer” naqueles dias de 1992 do que olhar para um homicídio numa cidade pequena do Estado – na qual ele também denuncia que a Globo tomou parte na terrível cobertura sensacionalista do Caso Evandro, a produção enfia uma nota de Ali Kamel – o “célebre” autor de Não Somos Racistas, explicando que não há racismo no Brasil – diretor de jornalismo da emissora. No texto, Kamel explica como “culpar a Globo […] tornou-se recurso daqueles que não têm explicação para seus erros“.
Não é exatamente uma crítica, mas sim um comentário: juntando uma coisa com a outra, a impressão que fiquei é que a Globo utilizou de O Caso Evandro e de Requião, sabendo do comportamento do ex-governador, para fazer coro na campanha contra a pessoa do presidente Jair Bolsonada (e não às suas políticas, das quais a emissora é cúmplice e beneficiária); essa resposta serviria para os dois políticos (que aliás são de campos bastante opostos). Nesse sentido, é um produto de seu tempo.
Reaparecimento de Osvaldo Marcineiro
Uma das grande atrações desse episódio seria finalmente a aparição do grande acusado de todo o crime: o pai de santo Osvaldo Marcineiro. Ao final da exibição original da série, somos informados que ele não havia aceitado participar do documentário – informação corroborada no livro, na página 343. Entretanto, já chama a atenção que o epílogo coloca Beatriz Abbage para explicar como foi possível encontrar o antigo amigo.

Através de uma intensa procura e contatos estabelecidos pelo facebook, Beatriz teria encontrado uma espécie de fake de Osvaldo (um perfil em que ele não usava seu nome para se preservar embora não se passasse por outra pessoa) em grupo da rede social, e gradualmente conquistou sua confiança, convencendo-o a ver o documentário primeiro e, depois, a se pronunciar.
Mas, vamos voltar um pouco. Nessa história, ele estava incomunicável, desaparecido; todavia, como o documentário afirma que ele não quis gravar depoimentos nos episódios anteriores? A produção tinha mas não quis passar o contato dele para Beatriz? É tudo tão mal contado que até o canal de YouTube O Brasil que deu Certo também entra na história e alega que foi o responsável por trazer Marcineiro de volta ao radar através de uma entrevista com os diretores do documentário. E coloca em xeque também, ainda que Mizanzuk tenha apresentado evidências, a versão de que Requião não respondeu a nenhum contato.
Todavia, um adendo mais grave é que a maior reviravolta de todo o caso, que envolve ele, o grande suspeito, fica para o epílogo mesmo já sendo conhecida pelos cineastas.
Uma das principais provas de acusação era o depoimento de Davina, tia de Evandro, que saiu para procurar o garoto durante a madrugada depois do desaparecimento, acompanhada do marido e amigos, dentre eles, o pai de Santo. No depoimento, ela dizia que Osvaldo estava incorporado e a entidade tentava ajudar a localizar o garoto. Um dos pontos em que a caravana parou para procurar era exatamente onde estaria o cadáver dias depois, mas os familiares não foram até o matagal.

Esse testemunho indicaria que Osvaldo sabia do local onde o corpo foi desovado, o que foi explorado a exaustão do documentário, com direito à reconstituição e exibição desta por vários capítulos. Entretanto, posteriormente Davina retificou esse depoimento em 1998 e informou que, na realidade, não era Osvaldo que lá estava e sim, De Paula, outro dos acusados. No livro, Mizanzuk coloca essa informação no meio do texto; entretanto, a série omite isso.
Durante todo o “corpo principal” do documentário, a única versão que temos é a de que quem estava com Davina no dia era Osvaldo. Apenas neste epílogo, exibido um mês depois do estreia do final do seriado no streaming da Rede Globo. Isto é, quem viu apenas o seriado original, composto de 7+1 episódios, não recebeu essa informação capaz de mudar toda a ótica do crime.
O questionamento que se torna principal é um em que todas as respostas possíveis depõem contra a opção dos realizadores do seriado; por que essa revelação, já conhecida e abordada por Mizanzuk normalmente no decorrer da investigação é deixada para um pós-escrito? Se ela não estava prevista, ela só foi realizada após Osvaldo Marcineiro decidir falar? Não era um informação considerada relevante? E caso já estivesse pronta essa reviravolta, mas foi guardada para o final; isso é ético? Tanto se já apostassem ou mesmo já soubessem que Marcineiro apareceria (o que é plausível, dada a forma como seu “ressurgimento” ao público foi mal contado), essa opção editorial permanece problemática. Afinal, intencionalmente, os jornalistas e cineastas responsáveis estariam omitindo um importante indício de inocência do principal acusado apenas para criar suspense e hype para um episódio extra. E, talvez até mais reprovável, se tratar de uma auto exaltação forçada dos realizadores em colocar essa “nova” evidência (que de nova não tinha nada, o depoimento foi revisto em 1998 e a informação está presente no livro, sendo de domínio dos realizadores) de tal forma na narrativa que seja entendida como uma das conseqüências de exibição de sua obra.
Não acredito que essa mudança de depoimento seja “a” prova da inocência do acusado e o que não faltou no caso foram testemunhas alterando suas versões, no entanto, eu gostaria de saber disso antes.
Novamente, apesar de tudo e das acertadas críticas, ainda há continuidades da cobertura jornalística do Caso Evandro de 1992 e de 2021.
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Um comentário em “O epílogo de “O Caso Evandro” do Globoplay: jornalismo, narrativa e opções editoriais.”