Pandemia e Agronegócio

Pandemia e Agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência Bob Wallace

Tradução: Allan Rodrigo de Campos Silva – Editora Elefante

Ano de Lançamento: 2016 – Minha Edição: 2020 – 605 páginas


Durante a pandemia de Covid 19, as teorias sobre sua origem foram várias; um vírus criado em laboratório pela China, um vírus criado em laboratório pelos Estados Unidos; um homem que comeu carne de morcego, um morcego que mordeu um homem… apesar das extravagâncias, todas são apenas explicações que correm atrás do próprio rabo.

Rob Wallace é um jornalista americano, originalmente um biólogo pesquisador de epidemiologia, que, infelizmente, se mostrou visionário ao escrever quatro anos antes da Pandemia esta obra. Denunciando como as práticas industriais e comerciais do agronegócio criaram um verdadeiro celeiro de doenças de alcance mundial. Aqui estão reunidos artigos que ele escreveu entre 2004 e 2016 – mais dois especiais coletados para a edição brasileira, pós-coronavirus – sobre o tema que dá título à obra em diversas publicações científicas e jornalísticas.

Com um domínio excepcional do tema (e com mais de 50 páginas de referências bibliográficas), Wallace faz um alerta contundente da ameaça que o Agronegócio é para a humanidade.

Nem vamos entrar em questões propriamente econômicas, ou mesmo na interferência política dos barões da agropecuária, de maneira mais genérica; o autor aponta exclusivamente – ainda que esse tema seja transversal, falando o tempo todo de política, economia e sociedade – dos riscos para a saúde pública com relação à propagação de doenças que o modelo dominante atualmente da produção de alimentos, em especial os de origem animal, apresenta. São vários os ângulos. Por exemplo, o confinamento dos animais em espaços fechados, proporcionando um ambiente de transmissão quase instantânea entre eles, e, um não-desenvolvimento do sistema imunológico dessas populações, que praticamente não têm contato nenhum com o mundo fora da instalação.

Galinhas sendo abatidas e recolhidas em Hong Kong, em 2014. Um esforço para impedir que se espalhasse uma nova cepa da Grive Aviária descoberta naquele momento.

A manipulação genética também é um alvo: a criação de raças de animais cada vez mais propícias para o abate rápido e limpo – até frangos que nunca crescem penas existem por aí – gera seres cada vez mais frágeis e suscetíveis às doenças. Não é coincidência que a maioria das epidemias dos últimos anos foram relacionadas a animais, como a Gripe Aviária ou Gripe Suína.

E, o que, para mim, foi a informação mais impactante: ao criar animais para serem abatidos cada vez mais rapidamente, a indústria acaba permitindo uma espécie de “seleção natural” das doenças. Os vírus e as bactérias, mesmo sendo seres mais primitivos, para continuarem se reproduzindo também acompanham essa velocidade de crescimento e expectativa de vida cada vez menor do hospedeiro. A transmissão das doenças acaba sendo feita pelos espécimes que são mais letais e mais rápidos de contagiar. Aqueles que demorariam mais para matar o frango ou para passar para outro animal, por exemplo, acabam desaparecendo junto com ele no abate e sobram, então, apenas os capazes de matarem e infectarem outros mais rapidamente.

As cadeias globais de produção e exportação, acabam dando uma amplitude às infecções em níveis jamais vistos. Multinacionais alimentícias possuem plantas de criação e abate espalhadas pelo planeta (notadamente próximos de grandes centros populacionais), empresas americanas na China, e chinesas nos Estados Unidos, e acabam criando um intenso comércio de raças cada vez mais débeis; e de doenças ou vírus junto com os produtos animais.

A pujança e o sucesso financeiro avassalador do agronegócio simplesmente obliteram qualquer outra forma de criação de animais e produção de alimentos. Os pequenos produtores ou de metodologias alternativas são derrotados financeiramente ou incorporados de forma “terceirizada” nas cadeias, em uma cruel rotina de negócio que exige escalas e números cada vez maiores, e, pune os produtores que não atingem metas com embriões, ovos, animais ou rações de menor qualidade.

Cotonete no nariz do porquinho: testagem de gripe em porcos, no Reino Unido, em 2015 para monitorar surtos de gripe suína.

Quando estoura, no melhor dos casos, um escândalo, ou uma epidemia, no pior, inicia-se um intenso processo de enxugar gelo. Ignorando-se completamente o terreno fértil de doenças e infecções que o agronegócio proporciona, a doença é tratada como uma “tragédia” e as medidas de combate são direcionadas aos seus sintomas: animais são abatidos, as instalações precisam ser mais bem fiscalizadas e a sociedade precisa correr atrás das vacinas e cobrir os prejuízos, por exemplo.

Sem meias palavras, este livro de Wallace é o trabalho de uma vida. Denuncia de cabo a rabo, com milhares de dados e centenas de referências, através de vários prismas e ângulos, das características biológicas ou econômicas, dos motivos ambientas ou sociais, de como o modelo atual do Agronegócio é uma ameaça constante e fatal à humanidade. Ainda tenha sido escrito antes, não é uma leitura fácil – o formato de artigos facilita por um lado, pois são textos curtos e fechados, mas o livro é muito longo e vários argumentos acabam se repetindo muito, tornando a experiência maçante em alguns momentos – mas fundamental para compreensão do mundo pós-covid 19.

Muito Bom 4,5/5

Um exame minucioso de todos os ângulos da relação indissociável entre o modelo de agronegócio e a disseminação de doenças; uma leitura fundamental para a atualidade.

Nomenclatura das doenças – O primeiro artigo do livro mexe em um assunto espinhoso e pode até afastar alguns leitores. Wallace argumenta que uma nova cepa da chamada Gripe Aviária, o H7N9, deveria ser nomeado de “gripe chinesa”. De acordo com o autor, essa titulação ao vírus teria como objetivo atribuir responsabilidade ao Agronegócio Chinês, tão ou mais predatório e exploratório que o ocidental.

Originalmente, essa doença havia nascido em 1997, quando da transferência de administração de Hong Kong do Reino Unido para a China. Os arredores da antiga colônia britânica, a província do Cantão, passaram a receber um intenso fluxo de capitais e gerando uma radical agro-industrialização para alimentar de comida a metrópole, e de dinheiro às empresas estrangeiras sediadas lá. Ignorando completamente o impacto ambiental, criou-se um verdadeiro caos na região ao colocar em aglomeração milhões de galinhas e galos para conviver com uma população local de patos, vitais na produção de arroz ao realizar controle de pragas – também de intensa produção no Cantão.

Para Wallace, colocar o nome da epidemia nos animais cria a noção de que as doenças são “fenômenos da natureza“, e não consequência das ações humanas – sua principal mensagem no livro. Nesse sentido, atribuir nomes diretos às doenças ajudaria a denunciar o papel do agronegócio nas constantes pandemias de origem animal.

Este posicionamento não é de todo errado; é um ponto de vista. E aliás, ele defende também que a Gripe Suína de H1N1, em 2009, seja chamada de Gripe NAFTA, pois ela teria se originado a partir intenso livre-comércio de produtos animais entre o México e Estados Unidos, na zona do NAFTA (North American Free Trade Agreement), acordo comercial entre os países da América do Norte.

Entretanto, acho ingênuo da parte do autor acreditar que a corda não romperia sempre para o lado mais fraco. Qual nome seria mais provável de pegar, Gripe Chinesa ou Gripe Americana? O caso mais famoso é a Gripe Espanhola, que surgiu nos Estados Unidos, mas ficou com o nome pois a Espanha foi o principal país a reportá-la em um primeiro momento, pois não estava com a imprensa censurada devido à Grande Guerra já que os espanhóis estavam neutros no conflito.

Realismo Capitalista – O conceito do filósofo britânico Mark Fischer explica que a dependência do sistema econômico e o domínio da burguesia é tão grande que a civilização humana se torna paulatinamente incapaz de pensar em alternativas ao Capitalismo. Isso ao ponto de que é mais fácil imaginar o fim da humanidade que o fim do Capitalismo.

Wallace aqui explora o conceito de One Health, uma iniciativa de pesquisadores do mundo todo de compartilhar integralmente todas as informações possíveis referentes à Saúde humana – partido do ponto que a integração da Terra hoje é tão intensa que qualquer doença poderia se tornar uma epidemia fatal para todo o globo.

O autor aponta que apesar de lindo, bonito, nobre, a One Heath só faria sentido se for estrutural. Ou seja, ao invés de trabalhar apenas com a cura de prevenção de doenças, também questione o que permite sua gênese e reprodução dos vírus, bactérias e afins. Uma amostra de Realismo Capitalista: os cientistas, empresas farmacêuticas e estados nacionais do mundo têm interesse de se unir para reparar os problemas decorrentes do agronegócio predatório, e não para tentar reparar justamente o agronegócio predatório.

Cercamentos e Fronteira Agrícola – No século XVI, a Inglaterra iniciou uma política pioneira que mudaria o mundo para sempre: os cercamentos eram a transformação da terra comunal dos camponeses, atreladas a eles e à aristocracia, em propriedade privada dos aristocratas. Era necessário agora ser dono do terreno para trabalhar ou explorá-lo, ou autorizado pelo proprietário através de locação e, claro, da prestação de serviços para ele. Foi o grande passo para a transição do Feudalismo para o Capitalismo.

O processo ainda não terminou na última fronteira agrícola do mundo (o grande volume de terras férteis ainda não explorada pelo agronegócio), a África. Os cercamentos estão a todo o vapor. Os governos, sob a égide da modernização e do aumento da produção de alimentos, para alimentar uma população muitas vezes subnutrida, estão transformando as terras comunais em pequenas propriedades. A questão é que essas terras rapidamente são compradas por gigantescas multinacionais por preços mínimos para ela, mas o dinheiro de uma vida para os camponeses.

Este movimento, de acordo com o autor, é que está gerando as explosões locais de casos de doenças que se imaginavam controladas, a Febre Amarela e, em especial, o Ebola. O desmatamento para criação de novos latifúndios ou exploração florestal, como o óleo de palma, desregula o equilíbrio ambiental e acaba forçando migrações de insetos, aves e outros animais que transmitem vírus e outras formas de infecções para populações novas de plantas, animais e humanos que não são imunes.

Extração do óleo de Palma em Gana.

Medidas Sanitárias – Outra importante denúncia de Wallace é que após alguma grande infecção ou epidemia, a resposta do setor e dos governos, ao invés de questionar o método de produção é aumentar os cuidados das instalações e criações. Além de ser uma prática de enxugar gelo, na realidade, tem os efeitos opostos à prevenção.

As medidas vão se tornando cada vez mais drásticas e custosas que virtualmente nenhum pequeno ou médio produtor (que não são os grandes focos de transmissão das doenças) é capaz de implantá-las. Desta forma, as empresas menores vão quebrando ou sendo absorvidas nas cadeias produtivas das gigantes do setor, que crescem cada vez mais, sendo, justamente, as causadoras das epidemias.


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Publicado por Lucas Palma

Paulistano, desde que me lembro por gente fascinado pelas possibilidades do futuro, em games, filmes e seriados, herança paterna e materna. Para surpresa geral, ao final da juventude descobri fascínio também justamente pelo oposto, me graduando e mestrando em História, pela Universidade Federal de São Paulo. Sou autor de Palavras de Revolução e Guerra: Discursos da Imprensa Paulista em 1932.

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