A História deve ser dividida em pedaços?

A História deve ser dividida em pedaços? – Jacques Le Goff

Tradução: Nícia Adan Bonatti – Editora Unesp

Data de Lançamento: 2014 – Minha Edição: 2015 – 149 páginas


As pessoas que viviam na Idade Média, sabiam que viviam num mundo medieval? Os revolucionários franceses sabiam que estavam marcando a mudança da Idade Moderna para a Idade Contemporânea? São perguntas que provavelmente quem gostava das aulas de história no colégio muito cedo se perguntou. A resposta é simples: não.

Dividir o tempo em pedaços – ou periodização no termo “profissional” – é um esforço do historiador em domar seu objeto de estudo; o tempo. É um esforço na direção da história em se tornar uma ciência. Automaticamente isso quer dizer que algo muito recente, colocado em prática apenas do século XVIII em diante.

Bom, aqui precisamos ir com calma, essa formulação quase sempre termina em morte. Não concordo integralmente que história seja ciência, mas neste caso, o que Le Goff nos aponta é “ciência” em oposição à narrativa literária, do que se tratava a historiografia até não muitos séculos atrás; oposição que é mais ou menos consenso entre nós atualmente – com a exceção de alguns aloprados (estou olhando para você, Hayden White, seu babaca).

Assim como um biólogo faz autópsias e desmonta seres vivos, para entender como aquele organismo funciona, ou um químico procura separar moléculas e partículas, para verificar de quais elementos elas são compostas, o historiador também precisa dividir os anos e séculos para compreender melhor como foi aquele tempo.

A primeira grande periodização histórica do ocidente foi através do Livro de Daniel, na Bíblia, onde ele interpreta o sonho do imperador babilônico Nabucodonossor. No sonho, uma estátua composta de cinco materiais diferentes representavam os variados impérios que governaram o mundo – mais um para o futuro; o “quinto império”. Com o cristianismo se tornando a religião dominante na Europa, essa divisão se popularizou entre os filósofos e estudiosos na Antigüidade tardia e Medievo.

Para eu entender como foi o Brasil dos anos 1930, preciso, antes de tudo, ver como ele foi nos anos 1920 e nos 1940, e, especialmente, verificar o que fez dos trinta diferente dos vinte ou dos quarenta; ou dos dez ou dos cinqüenta. Quando percebemos as mudanças e continuidades dessas décadas no país, nascem a República Velha e a Era Vargas – com suas certidões de nascimento e óbito, aliás, 1889-1930 e 1930-1945.

Peraí, ou melhor seria 1930 e 1954? Vargas voltou ao poder entre 1951 e 1954, e o grupo político que esteve a frente o país por décadas definitivamente racha no segundo governo, e uma nova divisão que protagonizaria as disputas no Brasil até 1964 nasce nesse mesmo momento.

Quando passamos a identificar outras permanências e rupturas que ultrapassam ou encurtam esses marcos o debate se acirra, e sempre caímos na mesma pergunta, devemos dividir então o tempo em pedaços? Criar eras e Repúblicas? Bom, mesmo se minha vida dependesse disso eu manteria minha posição que sim. Não só, mas que todo o trabalho do historiador é exatamente isso – e também o que garante que continuamos a trabalhar, são polêmicas como essas que são nosso combustível.

Infelizmente, após o segundo parágrafo, tudo o que você leu até aqui foram apenas reflexões minhas – lamento fazer você perder seu tempo. Pelo menos, você não perderá tempo lendo este ensaio (a última obra de Le Goff em vida) que trata muito, mas muito, marginalmente essas questões. É um ensaio dedicado tão somente ao debate da existência ou não do Renascimento e dos marcos entre Idade Média e Moderna.

Quando comecei a leitura, imaginei que seria um “estudo de caso” muito privilegiado de periodização: observar como se construíram estes marcos entre medievo e modernidade, e então as implicações disso para a historiografia depois.

Entretanto, só essa primeira parte está presente aqui, e depois não raro temos a sensação de estarmos lendo uma picuinha muito específica de um grupo de historiadores: o autor aponta que uso de determinada coisa ou um costume que se popularizou no Renascimento – e que por isso se tornou um marco de mudança de período – já havia aparecido ou estava em estágio embrionário no século XII ou XIII. Ou, ainda, Le Goff argumenta que algumas coisas da Idade Moderna que foram concebidas na alta Idade Média, outras que só se consolidaram na Idade Contemporânea. E no final parece que estamos patinando: tudo do renascimento já existia antes e continuou existindo depois.

Por todo esse esforço poderíamos dizer que a resposta para o título seria um não, afinal, pelo que ele escreveu, existem mais continuidades que mudanças no passar do tempo, mas não é esse o caso. Ele defende que sim, ele só não concorda com o a existência do período Renascimento (o que teria existindo seria uma longa Idade Média) e aí a sensação que você foi enganado aperta: o texto não é discussão sobre dividir ou não a história em pedaços, e sim sobre um pedaço em especial.

Mediano (2,5/5)

é um ensaio de um dos maiores historiadores de todos os tempos, com certeza vale a leitura, mas é focado demais no debate específico da oposição ou não entre idade média e renascimento. Acaba respondendo muito marginalmente a pergunta do título.

Pecia: com a invenção da imprensa tipográfica em 1439, nos acréscimos da Idade Média, a visão que temos dos livros antes de Gutenberg é de manuscritos em pergaminhos reproduzidos por monges em conventos. Embora de fato tenha sido a forma mais comum de reprodução do conhecimento naqueles tempos, no século XIII, se desenvolveu em algumas universidades européias a pecia: um sistema de reprodução compartilhada. Os professores dividiam os livros do curso em partes separadas, quatro, normalmente; entregues aos estudantes que deveriam copiar apenas sua parte – a pecia – e posteriormente os editores da universidade reuniam as cópias e montavam os exemplares.

A longa idade média: ao final, a conclusão do ensaio de Le Goff é que o renascimento é apenas uma subdivisão de uma longa idade média.

Um dos grandes estigmas do medievo é a noção de demora e lentidão de passagem do tempo, de uma imobilidade geral da civilização humana. É por isso que essa época da humanidade é mais usada para criar histórias do gênero de fantasia. Fica muito mais fácil lidar com um universo ficcional baseado num período onde não há mudanças significativas e assim estabelecer arquétipos de personagens e arcos cíclicos nas narrativas.

Quando ele coloca o Renascimento, período de grandes inovações tecnológicas e culturais, como um pedaço da Idade Média – pois elas já estavam sendo gestadas algum tempo antes – é para combater essa noção.


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Publicado por Lucas Palma

Paulistano, desde que me lembro por gente fascinado pelas possibilidades do futuro, em games, filmes e seriados, herança paterna e materna. Para surpresa geral, ao final da juventude descobri fascínio também justamente pelo oposto, me graduando e mestrando em História, pela Universidade Federal de São Paulo. Sou autor de Palavras de Revolução e Guerra: Discursos da Imprensa Paulista em 1932.

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