O clássico golpe de Estado, consolidado, em especial, na segunda metade do século XX, tomava forma através da figura de um general, marechal, generalíssimo, comandante, ou algo que o valha, com quepe do tamanho dos figurinos da Carmen Miranda assistindo a tanques, caminhões e soldados desfilando na frente do palácio presidencial.
Este é um cenário que talvez possa estar ficando no passado.
Na realidade, apesar desta imagem descrita, os golpes se revestiam de alguma legitimidade burocrática. No caso do 1º de abril de 1964, uma coluna de militares comandadas por Olympio Mourão marchava de Minas Gerais para o Rio de Janeiro. Entretanto, essa foi “apenas” uma demonstração de força, que fez com que o presidente João Goulart, que estava no Rio, recuasse – passando antes por Brasília – para o Rio Grande do Sul.
Em Brasília, uma sessão farsesca, decretava a vacância da presidência. Jango foi impichado sob a alegação de ter saído do país sem autorização do Congresso – ele teria fugido para o Uruguai (e estava no RS). O presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, assumiu como chefe de governo e Estado entre 2 e 14 de abril, até a eleição indireta de Castelo Branco.

Os tanques nas ruas, as tomadas de centrais telefônicas e jornais por tropas golpistas, e mesmo bombardeios estratégicos em capitais, são momentos de decisão. As cartas de um lado eram colocadas na mesa, e ao outro restava a rendição ou o contragolpe, com uma medição de forças. Jango recuou após perceber que perdera quase todo o apoio armado – e, decisivamente, após descobrir o plano da Invasão Americana caso ele resistisse, na Operação Brother Sam.
Em novembro de 1955, por outro lado, no que ficou conhecido como o Golpe da Legalidade ou Movimento 11 de Novembro, o General Teixeira Lott frustrou a manobra do então presidente Carlos Luz – que ficou apenas 3 dias no cargo – a qual visava impedir a posse de JK e Jango como presidente e vice eleitos em outubro. Luz embarcou no cruzador Tamandaré, acompanhado de comandantes militares e tentou criar, no navio, um gabinete paralelo para não reconhecer os novos eleitos. Lott, por sua vez, mobilizou militares legalistas, cercou a embarcação, conseguiu impedir que os golpistas encontrassem apoio em outros estados e forçou o seu impeachment no dia seguinte.
Mais no passado, em 3 de Outubro de 1930, liderados por Vargas, dezenas de militares e militantes políticos saíram em marcha do Rio Grande do Sul em direção ao Rio de Janeiro com o objetivo de impedir a posse de Júlio Prestes, eleito na eleição presidencial daquele ano. Com a Coluna ganhando cada vez mais força, na capital federal, os comandantes militares depuseram Washington Luís, encerrando a República Velha, no momento que Vargas chegava à divisa de São Paulo. As forças militares paulistas poderiam ser a última resistência do decrépito regime, mas não houve o embate, dada a queda do presidente. Os revolucionários de 30 entraram triunfantes tanto em São Paulo quanto no Rio.

Os Bloqueios Fantasmas

O país acordou em 31 de outubro do ano passado com um profundo sentimento desforra. Uma intensa campanha eleitoral deu a vitória por estreita margem à Lula; uma explosão de felicidade no Brasil deu a sensação que um futuro melhor viria após os últimos 6 sombrios anos. Entretanto, não foi bem assim que as coisas se seguiram.
Ao longo da segunda feira, e em especial, na terça, dia primeiro, diversas estradas importantes passaram a ser bloqueadas por caminhoneiros e manifestantes, que buscavam impugnar a eleição de Lula. No pico do movimento, foram registrados quase 400 bloqueios em todo o país. Desde estradas na serra catarinense até a interrupção das Rodovias Castello Branco e Presidente Dutra, verdadeiras “autobahns” de São Paulo, com trechos de 12 faixas.

Justamente pelo transtorno causado, a cobertura da imprensa foi extensa, e permitiu demonstrar um curioso paradoxo. Diametralmente oposta ao transtorno, era a adesão de pessoas aos bloqueios. Na maioria dos casos, o número de policiais era maior que o de manifestantes; em algumas imagens, é possível ver a ausência total de pessoas na entrada, que seguia bloqueada pela polícia. Na prática, impedindo que veículos passassem por cima de faixas ou bandeiras.
Em uma cobertura pela manha, manifestantes haviam fechado uma pista da Marginal Tietê ao se posicionarem não na principal via expressa de São Paulo, mas sim na mureta de uma ponte que atravessava avenida e o rio. Ação da polícia, informou o jornal matinal, foi acionada para fechar a parte abaixo do local onde estavam as pessoas. Seria uma rotina para preservar os veículos de receberem objetos atirados abaixo pelos manifestantes, e uma operação padrão para caso houvesse queda de algum deles da ponte.

No Metrô de São Paulo, os operadores de trem, e demais funcionários, recebem orientações e treinamentos para diversas anormalidades que eles podem observar dentro das estações e que seriam passíveis de levar à paralização do sistema, das circulação dos trens. Não é o caso de apontá-las aqui, mas com um exemplo absurdo; ao ver uma pessoa carregando um piano de cauda na plataforma, um operador pode decidir não movimentar mais o trem. Alguém com o conhecimento desse procedimento operacional, pode posicionar pessoas com pianos de caudas em várias estações e assim paralisar 3 milhões de pessoas.
Por iniciativa de manifestantes que poderiam ser membros das forças de segurança ou teriam contatos com autoridades policiais; ou mesmo por orientação de comandantes dessas instituições que exigiram mais rigidez – se uma pessoa falar a palavra piano você deve parar o trem! – ou uma maior prevenção – interrompam a circulação a estrada tal por precaução pois há ameaça de protesto! – muitos dos bloqueios eram mantidos exatamente pelas polícias.

O último que sair da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal apague a luz.
A pro-atividade de prevenção da primeira semana de novembro por parte das polícias foi substituída por total inatividade no primeiro final de semana deste ano, no sombrio de 8 de janeiro. Conforme as investigações estão avançando, fica claro como o conhecimento de estruturas e a influência por dentro de determinados agentes da Polícia Militar do Distrito Federal que possibilitou todo o corrido.
Em reportagem veiculada em 27/01/23, o Jornal Nacional apontou como haviam relatórios de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do DF informando do movimento chamado de “Tomada do Poder” veiculado para o domingo, mas Anderson Torres – o secretário de Segurança Pública que havia deixado a minuta do golpe em casa. Descoberta tragicômica, tal como no depoimento de Condoleezza Rice em 2003, no qual ela diz que não havia nada de específico nos relatórios de inteligência; questionada sobre o nome do relatório, ela diz que era “algo como Al Quaeda planeja atentados terroristas em Nova Iorque e Washgiton“.
A secretaria de segurança pública, na pessoa do recém empossado Torres, também aproveitou para dar férias para todos os empregados chave da Polícia Militar, comandantes de batalhões e até mesmo o coordenador de operações da Instituição. Oficiais menores passaram a ser os responsáveis pela força; e policiais em treinamento foram deslocados para a proteção da Praça dos Três poderes no dia do ataque, conforme também o relatório do Interventor Federal, Ricardo Capelli.

A ação do Governo Federal, de intervir na Segurança Pública do DF, e não solicitar auxílio de outras forças ou mesmo do exército se demonstrou certeira. Foi possível demonstrar que com a mesma estrutura e equipe era bastante factível impedir o ataque ou controlar os manifestantes.
As investigações vão demonstrando cada vez mais camadas conspiracionistas, além das provas encontradas na casa de Torres. No dia seguinte, o governo Federal havia alertado para uma mudança de protocolos para aquele domingo; contrariando acordos com o Ministério da Justiça, o GDF diminuiu o contingente. Análises posteriores das imagens indicam também, por um lado, comportamento coordenado entre os manifestantes e decisões controversas das tropas, como desfazer linhas de contenção.
Selfie e água de coco na praça dos três poderes.
Nesse sentido, parece-se que as cenas típicas do século XX, de cortejos de caminhões e tanques de guerra, de revista de tropas e generais disputando quem tem o maior quepe podem ser substituídas por outras mais contemporâneas ao XXI.
O uso das Polícias Militares em golpes no Brasil por si só não constitui uma inovação; a PM paulista reivindica em seu brasão a participação no golpe de 64. Durante a República Velha e nos primeiros anos da Era Vargas, as Forças Públicas, nome das PMs na época, foram mobilizadas diversas vezes para derrubar governos estaduais e lutaram guerras civis regionais. Essa não é a novidade; a novidade é a substituição da agressividade pela assistência.
Dando um ar de legitimidade aos protestos, pois não há a interferência direta das autoridades, com a devida assistência das forças repressoras do baixo claro, qualquer ato coordenado pode se transformar em algo de grandes proporções. Claro que daí para frente é uma outra incógnita; estamos falando de uma inovação. O que faltou para que em 8 de Janeiro se concretizasse um golpe? É necessário um vácuo de poder e algum disposto a assumir, e aí nessa função, não será um inspetor da GCM a se tornar o presidente da República. Esperemos que não viver para descobrir o desfecho.

Policiais e guardas locais, com muita calma, conversando tranquilamente a distância, seguindo ordens e procedimento pré-estabelecidos, que acabam por facilitar a vida ou garantir o caminho de agentes conspiradores e golpistas em direção aos seu atos – e, no caso dos bloqueios das estradas, muitas vezes, os próprios agentes da segurança pública acabam por fazer os protestos eles mesmos no lugar dos manifestantes. Esta pode ser a imagem militar do golpe do século XXI no Brasil.
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