Eichmann em Jerusalém

Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a Banalidade do Mal – Hannah Arendt

Tradução: José Rubens Siqueira – Companhia da Letras

Lançamento: 1963 – Minha Edição: 2021 (28ºr) – 337 páginas


Seja a semente do Espaço, Khan Noonien Singh, em Jornada nas Estrelas; o temível John Smith de O Homem do Castelo Alto; o sádico instrutor Sakamochi em Battle Royale; o frio Homem-que-fuma em Arquivo X; o tresloucado Coronel Kurtz (ou qualquer outro oficial americano) em Apocalypse Now… a tendência é que famosos criminosos de Guerra sejam retratados com uma relativa reverência na literatura, filmes ou séries. Afinal, foram homens que realizaram coisas extraordinárias, no sentido de fora do comum, no caso, para o mal.

Todos são retratados como pessoas extremamente inteligentes, algumas vezes até bonitas, que constroem complexas filosofias e visões de mundo para justificar ou racionalizar seus atos cruéis; ou quando não há muita explicação para os atos malignos, é necessário sempre enfatizar seu prazer ou satisfação com a maldade.

Mas e se você encontrasse um desses personagens históricos e descobrisse que ele tem a “mente de um carteiro“? Foi a dúvida que assolou quem acompanhou o julgamento de Adolf Eichmann, realizado entre 1961 e 1962, em Israel, após sua captura na periferia de Buenos Aires meses antes. O responsável pela logística do Holocausto, que organizou o transporte de milhões de pessoas para a morte, o “Especialista em Assuntos Judeus”, como foi nomeado oficialmente pelo governo, se mostrou muito menos imponente do que todos esperavam.

Hanna Arendt – ela mesma vítima da perseguição aos judeus na Alemanha, e radicada nos Estados Unidos – foi a excelente escolha da revista New Yorker para a cobertura do julgamento de Eichmann. Pouco depois do término do processo, ela expandiu seus escritos para a publicação deste livro que se tornou um dos mais influentes e polêmicos do século XX.

Toda a controvérsia parte exatamente da reflexão acima, enquanto a mídia e o governo israelense – importante lembrar que era um país com pouco mais de uma década de existência – realizavam a forte propaganda de que tinham capturado e levado a julgamento um homem de maldade comparável ao próprio Hitler, sua cobertura seguia na direção completamente oposta.

Bastante patético, Eichmann oscilava entre dizer que cumpria lei e ordem mas também possuir um senso crítico que não seguiria “qualquer lei ou ordem”, ele possuiria iniciativa e pensamentos próprios apesar de apenas levar a cabo operações pensadas por outros (evocando até mesmo Kant para explicar esse paradoxo). Uma característica importante era como ele se comunicava através de clichês e frases prontas, e, ainda dependendo muito de “oficialês”, a linguagem militar de falar e não dizer nada. Questões alvos de forte reflexão por parte de Arendt, que discorre muito sobre entre diferença de “leis” e “ordens”, da atemporalidade de uma e efeméride de outra – mas nada tão preto no branco, ordens de determinados líderes se tornavam leis, por exemplo – e da mesma forma, aprofunda-se bastante com relação a linguagem “técnica” do Holocausto.

Ainda, Eichmann tentava explicar constantemente que não tinha nada diretamente contra os judeus, e até se considerava um sionista (militante pela criação de um Estado Nacional Judeu), acreditando que as deportações realizadas por ele eram uma espécie de auxílio ao sionismo – antes do extermínio, a política alemã era expulsar ou concentrar os judeus em determinadas regiões. Em um momento bastante bizarro, ele disse, quando foi informado sobre os planos do Holocausto pela primeira vez: “perdi tudo, toda alegria do meu trabalho, toda a iniciativa, todo o interesse; eu estava […] arrasado; pois não “acreditava numa solução [da questão judaica] por meio da violência“.

Para ajudar, conforme cruzamento com provas e testemunhos levantados durante o julgamento e ainda bibliografia adicional, a autora aponta que muita da responsabilidade atribuída ao “encarregado da logística do Holocausto” foi exagerada. Era frequentemente desprezado por outros comandantes (ele mesmo nunca chegou ao generalato) ou passado para trás em certas decisões, mas, especificamente, ele acabava sendo levado pelas políticas ou da Alemanha, ou das nações ocupadas, que desejavam expulsar ou exterminar os judeus de acordo com os ventos da guerra. Ele apenas tentava fazer isso da melhor maneira possível com respeito a logística, mas possuía pouco poder de decisão sobre levar ou não a cabo à Solução Final – especialmente no “Leste” (Polônia e União Soviética ocupadas), onde aconteceram as maiores crueldades e número de vítimas.

Nesse sentido a Banalidade do Mal significaria que não é necessário ao perpetrador dessas maldades ser em si maligno ou sádico, essas não são características inerentes a assassinos em massa; o mal pode se transformar em coisas rotineiras com o devido contexto político e regime extremo – totalitário, para engatar em outras obras da autora, como ela o faz em alguns pontos da obra.

Entretanto, pode não ser bem isso. Na realidade, o livro é decepcionante nesse ponto, um conceito tão interessante é bem pouco desenvolvido pela autora. Na realidade, é mencionado de supetão apenas na última frase da obra principal, como uma espécie de conclusão de tudo o que ela apresentou sobre Eichmann e Nazismo por todo o texto. Legal, mas decepcionante para algo que é o título da obra; inclusive, criando uma experiência curiosa na leitura, tudo que ela fala do réu você tenta encontrar respostas para o que seria a banalidade do mal… e isso nunca chega. Quando ela aponta, finalmente, você meio que já criou na sua cabeça o que seria o tal conceito e apenas confirma, por isso é possível encontrar várias intepretações diferentes do que ela queria dizer com tudo – a autora passou o resto da vida tendo que explicar melhor o quis dizer.

Aliás, apesar do valor inestimável da obra, é uma leitura extremamente cansativa. Originalmente uma série de reportagens, o livro é desorganizado – uma explicação básica de como funcionou o julgamento, com relação à datas, sessões, testemunhas, participantes é o penúltimo capítulo, por exemplo. Os temas vem e vão por toda a obra e eles nem sempre têm conclusões, a cronologia das coisas é confusa e Arendt faz constantemente inúmeros apartes do que está falando. Todos bem valiosos e interessantes, mas irrita e atravanca a leitura.

Carteira de Trabalho de Eichmann sob disfarce de Ricardo Klement na Argentina

E quando eu digo a cronologia ser confusa, é no plural porque ela está contando, mais ou menos, três histórias separadas: a do Holocausto, a de Eichmann e a do Julgamento. Cada uma tem suas discussões próprias; na primeira é algo mais historiográfico (a mais organizada e, ao meu gosto, a melhor parte), na segunda é algo entre a filosofia e psicologia, e a terceira sobre filosofia e direito. E este último tema carrega discussões muito densas porque as ações de Israel, tanto ao capturá-lo quanto ao julgá-lo, foram extremamente controversas e violaram uma série de convenções internacionais.

Tudo é interconectado o tempo todo, entretanto não da melhor forma para o leitor; um determinado argumento começa, é interrompido por dezenas de páginas, para depois ser retomado. Os personagens também aparecem e desaparecem sem explicação, inclusive o próprio Eichmann, afinal o texto foi escrito contemporaneamente ao julgamento; para ser cotejado ou lido em conjunto com a cobertura tradicional – que se encarregaria das tarefas mais “mundanas” de explicar quem é quem e o que houve e quando.

Essa cobertura mais trivial do julgamento faz muita falta e acaba dificultando muito a leitura. Nesse sentido, incomoda muito uma obra tão fundamental para o século XX ter recebido tão pouco cuidado editorial.

Muito Bom (4/5)

Que leitura cansativa! Uma obra desorganizada, trata de muitos temas e muito amplos numa seqüência complexa e cheia de apartes. EntretanTo, de indispénsável conhecimento, ela mexeu no vespeiro da memória do holocausto. o retrato da mediocridade e trivialidade de Eichmann é uma das mais fortes e assustadoras imagens do século XX.

Regras de Linguagem: Um conceito criado pelos próprios alemães, era uma espécie de rígida “etiqueta” nas comunicações oficiais. Os termos para os assassinatos em massa eram a “Solução Final”, “Evacuação” ou “Tratamento Especial”; as deportações eram os “reassentamentos” e “alterações de residência”; e os trabalhos forçados eram “Trabalhos no Leste”. Havia também Regras efêmeras, quando era necessário algum tipo de satisfação ao “mundo externo” (os não-nazistas), outro termo integrante desse conjunto, havia circulares altamente confidenciais com mentiras ou versões combinadas de justificativas a se apresentar.

Segundo Arendt, o objetivo dessas linguagens, além de implicações diplomáticas – citando o caso da Eslováquia, governada por um padre, foi descuidada e deixou claro demais as coisas forçando o Vaticano a intervir – era um efeito sobre a consciência dos envolvidos, fazendo com que eles dissociassem o que faziam de seus conceitos prévios anteriores à função. Antes de se tornar um responsável por uma câmara de gás, por exemplo, para aquele oficial, o que fazia poderia ser um assassinato tal como entendia assassinatos; mas com essa comunicação, se diferenciava sendo um “tratamento especial”.

Atestado de maioridade: Um aspecto menos abordado, mas provavelmente o mais interessante, é a importância do julgamento para a consolidação do Estado Israelense, que existia apenas há cerca de 15 anos. Ao criar, à força, jurisprudência para julgar um responsável pelo holocausto ele se tornaria definitivamente o representante dos judeus do mundo todo.

Culpa da Vítima: a principal controvérsia levantada pelo Relato sobre a Banalidade do Mal, e a mais injusta possível, diz respeito ao fato de Arendt expor o quanto à liderança da comunidade judaica colaborou com o Holocausto. Na realidade, ela já jogou um pouco de água no chopp ao mostrar a mediocridade de Eichmann, comprometeu de certa forma o espetáculo, e isso foi interpretado como uma espécie de enfraquecimento da dor e da gravidade do holocausto – o que, no fundo, ao meu ver, tem o efeito justamente contrário.

Por boa parte do livro, ela denuncia como as lideranças judaicas, organizadas em grêmios recreativos, profissionais, comerciais ou mesmo em comitês criados especificamente para organizar as deportações, fizeram frações importantes do trabalho do Holocausto. Ações justificadas como um esforço para diminuir a brutalidade, violências e perdas gerais causadas pelo processo. Elas selecionavam as vítimas, administravam os guetos, levantavam bens dos mortos e reprimiam duramente – através de milícias organizadas pelas próprias – rebeliões e protestos contra as autoridades nazistas.

Ela aponta dados que poderiam indicar redução entre 50% e 40% nas vítimas caso não houvesse a colaboração das lideranças judias, em comparação com locais onde não houve essa organização e entre grupos que se rebelavam ou fugiam dos guetos e campos. Aliás, Eichmann era conhecido justamente pela habilidade de lidar com essas lideranças judaicas responsáveis pelas deportações – ou até, como outros nazistas, de organizar Conselhos Judeus em territórios recém ocupados.

Em todo o tipo de opressão e ocupação, sempre há uma elite dentre os oprimidos que colabora com tudo para conquistar ganhos ou sobreviver melhor às tragédias e catástrofes. É muita ingenuidade ignorar isso, por um lado, assim como era também de interesse do então recém-estabelecido Estado de Israel, provavelmente administrado por uma considerável representação dessas lideranças, não desejar tais exposições – ao final, poderia significar que Eichmann estava sendo julgado por seus próprios “assistentes”.


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Publicado por Lucas Palma

Paulistano, desde que me lembro por gente fascinado pelas possibilidades do futuro, em games, filmes e seriados, herança paterna e materna. Para surpresa geral, ao final da juventude descobri fascínio também justamente pelo oposto, me graduando e mestrando em História, pela Universidade Federal de São Paulo. Sou autor de Palavras de Revolução e Guerra: Discursos da Imprensa Paulista em 1932.

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