Falling Skies e a noção americana de História

Algumas pessoas definitivamente possuem o toque de Midas, no entretenimento uma delas é Steven Spielberg, mesmo com a explosão dos enlatados da Marvel, ele ainda é o diretor com a maior bilheteria da história do cinema, tanto dentro dos EUA quanto mundial. Sua marca como produtor imediatamente transforma qualquer filme e série em um clássico.

Quando ele decidiu se unir com o roteirista de O Resgate do Soldado Ryan para trabalhar com um seriado de Ficção Científica (seu gênero favorito), não tinha como dar errado. E não deu mesmo, em suas primeiras temporadas ao menos.

Apostando em uma abordagem não tão comum quando lidamos com alienígenas na TV, Falling Skies é uma série pós-apocalíptica. A Terra está completamente arruinada após uma invasão alienígena que dizimou mais de 90% população do planeta quase que instantaneamente, sem muitas explicações. Após a desorientação inicial causada pelo ataque, alguns grupos estão tentando se reorganizar como sociedade, e, quem sabe, empreender alguma resistência.

Tal como em seus principais clássicos da Ficção, o científico da coisa é mais um plano de fundo para Spielberg desenvolver temas, na realidade, bem próximos de nós: dramas de relacionamentos; familiares, amorosos, fraternais… e de fato, nisso o seriado sempre foi bem. Genuinamente nos importamos com o destino de todos os personagens. Entretanto, qualquer coisa fora disso sempre foram erros colossais.

A coisa foi tão absurda que, quando justamente a estória parecia caminhar e evoluir com relação ao seu plano de fundo, ao final da terceira temporada, quando finalmente tudo que foi proposto pelos protagonistas, de uma reorganização e resistência da humanidade frente à invasão, parece que vai acontecer, Falling Skies sofre um reboot! Literalmente há um reset na trama política e social, o governo formado desaparece e os aliados alienígenas mudam de postura, para retornar ao mesmo estágio dos primeiros instantes da série; pessoas desorientadas buscando seus entes queridos.

É uma coisa extremamente bizarra: uma série ser “rebootada” durante sua própria exibição original. O que podemos especular é que os produtores decidiram sacrificar o desenvolvimento geral para poder continuar explorando (e secando) a fonte dos dramas de relacionamento. Isso pode ser visto quando, em meio aos últimos episódios, gastamos mais de dois capítulos com a história de uma antiga namorada do Coronel Weaver que não interfere em absolutamente nada na conclusão de todo o seriado; os personagens chegam e saem dessa história iguaizinhos e nada interfere no final da série.

Mas não apenas isso; a desorientação da trama de fundo de Falling Skies ficar mais clara se olharmos para como os americanos entendem o que é História (como área do conhecimento) e Historiografia (escrita da História).



O que me fez assistir Falling Skies, além de ser do meu gênero favorito, é que o herói e líder da resistência seria um pitoresco professor de História. Difícil um sonho maior! Pena que em algumas cenas já deu para entender que seria muito difícil corresponder às expectativas.

A grande contribuição profissional de Tom Mason, o tal professor e protagonista do seriado, foi explicar que algo parecido Guerra de Guerrilha é eficaz em caso de territórios invadidos. Uau. E citar exemplos da Revolução Americana – a Independência dos Estados Unidos – de como o exército continental venceu tal ou qual batalha contra os britânicos. Na realidade, sua atuação como historiador não passa de nada mais que alguns discursos capengas; e não poderia ser diferente porque as situações não tem absolutamente nada a ver uma com outra.

As guerras de independência americanas (dos EUA à Argentina) ocorreram, a muito grosso modo, quando as sociedades aqui desenvolvidas, que eram uma mistura criada por séculos – e nem de longe pacífica – entre a população nativa e uma população colonial (originária da metrópole) que, administrando a colonização, passou a se enraizar aqui e criar interesses diferentes daqueles que administravam, lá da Europa, as colônias. Na trama do seriado, não há nada nem remotamente parecido, os alienígenas dizimaram a população; e não só não colonizaram aqui com sua própria espécie, como também não desenvolveram entre os nativos (humanos) algum tipo de elite administrativa – como os criollos na América espanhola, ou os bacharéis formados em Coimbra na portuguesa.

Como seria possível não perceberem essa diferença óbvia entre os dois processos de colonização, na América histórico, e dos Alienígenas ficcional?

É bastantes simples; a história para os estadunidenses não é uma coisa crítica, no sentido de análise, contestação ou confrontação. Com raras exceções, até o século XIX a História, como área do conhecimento, olhando para o passado, procurava muito mais legitimar o presente. Cronistas régios explicavam como o rei era descendente do rei mitológico que criou o país; criavam-se registros de como Deus escolheu determinada família, região ou povo para ser o escolhido; ou Antiquários apontavam para a veracidade de alguma relíquia.

Muito gradualmente depois da Revolução Francesa foram surgindo movimentos que transformaram isso, como por exemplo: o historicismo (que buscava confrontar sempre as fontes de forma fiel), o romantismo (que colocava o povo no centro da narrativa) e em especial, em uso até hoje, o marxismo (que encarava o estudo como passado como objeto de transformação do futuro) e as escola dos Annales (que, dentre outras coisas, queria intercâmbio entre a história e demais áreas do conhecimento) são alguns deles. A própria criação de outros campos das humanidades foi uma reposta a ausência de crítica no estudo da sociedade – como a antropologia e a sociologia (aqui no Brasil agrupadas no curso de Ciências Sociais).

Essas transformações no estudo do passado não foram uniformes no mundo todo; e o que se deu nos Estados Unidos foi que a transformação nas ciências humanas ficou restrita a esses novos campos das humanidades, notadamente a Antropologia e a Sociologia. Enquanto isso, a História permaneceu relegada a velha sua função de legitimação. Relegada do meu ponto de vista, como historiador brasileiro, profundamente influenciado pelos Annales (são a estrutura básica de qualquer curso universitário por aqui), que acha não só bizarro como extremamente ofensivo o que os historiadores fazem por lá. Já para os próprios norte americanos, há prestígio.

A função da História nos Estados Unidos é legitimar o presente do país. E isso também tem suas razões: os EUA foram o primeiro país moderno criado “do zero”; a partir de uma sociedade completamente nova, e com noções de republicanismo e cidadania. Influenciando não só o resto da América como revolucionários europeus (é por isso que estudamos esse tema na escola). Eles tinham um pesado fardo de criar uma série de mitos, justificativas, imagens para basear seu novo país – coisa que os velhos estados europeus já possuíam.

Não é a toa que a pesquisa factual e material lá é extremamente minuciosa; que se sabe exatamente quantas balas foram disparadas na batalha de qualquer-coisa-bury; que todo ano as pessoas se fantasiam e brincam de guerra civil em fazendas espalhadas pelo interior; ou onde exatamente passou a cavalgada de Paul Revere (midnight ride)para avisar da chegada de tropas inglesas. Tudo lindo e bonito, mas muito oco com o passar do tempo, na realidade.

O próprio episódio de Paul Revere é emblemático e recebe uma verdadeira autópsia na obra Mitos sobre a Fundação dos Estados Unidos, de Ray Raphael. Esse personagem histórico teria cavalgado durante uma madrugada em 1775, avisando povoados americanos da chegada de tropas britânica para reprimir os rebeldes. Sua determinação e resiliência foram responsáveis por impedir uma derrota dos revolucionários, que puderam se preparar para a resistência. O episódio é tratado como um grande ato individual de patriotismo e estátuas dele estão em várias cidades; entretanto, ele não foi o único que fez parte daquele esforço. Foi acompanhado de outros mensageiros, claro, mas o mais impressionante é que quando eles chegavam em alguma localidade, se apresentavam outras pessoas para continuar com o aviso em outras vilas e cidades, onde também haviam mais simpatizantes. A força do acontecimento, longe de um individual “ato de patriotismo”, se devia a uma extensa rede de comunidades prontas para resistir e lutar pela Independência do país.

A imagem de um corajoso e imparável cavaleiro salvando um país inteiro em uma cavalgada noturna está em paralelo para a posição de Tom, e todos os protagonistas, em Falling Skies. O seriado trabalhou cada vez mais para isolar seus personagens de eventuais redes de resistência aos alienígenaso que explica melhor o auto-reboot a partir da quarta temporada – e transformar a libertação da humanidade em um ato individual; como a História (área do conhecimento) faz nos EUA, transformar a libertação do país numa obra de alguns punhados de pessoas e eventos.

Como explicavam-se os poderes de um rei ou nobre em tempos passados. E, aliás, é assim que (pejorativamente) nos referimos a essa forma “ultrapassada” (que ironia, historiadores chamarem algo de ultrapassado); história dos grandes homens e grandes eventos – história événementielle em “termos técnicos” – que é a forma dominante da produção de História nos EUA.

O Expresso Berlim-Bagdá

Um longo e enfadonho livro que toca apenas marginalmente em seu tema, e que é a cara da histografia americana: grandes nomes e grandes eventos, um atrás do outro em minuciosos detalhes.



Esses recursos narrativos, de isolar os heróis, empregados por Falling Skies não são exclusivos seus; na maioria dos seriados de ficção científica um importante pilar é sempre dificultar a vida dos protagonistas. Quando eles ficam mais fortes ou chegam numa maré de tranquilidade, invariavelmente a narrativa perde força – Stargate Atlantis ou Battlestar Gallactica, para citar dois exemplos rápidos, passaram por esse problema em algum momento.

O problema é como esta série lidou tão mal com isso. Em SGA os ZPMs serviam para frear os protagonistas quanto necessário, ou em BSG há todo um arco para trabalhar com o destino da Pegasus. Em Falling Skies, simplesmente de um episódio para o outro, tudo desaparece; o mais irônico é acontecer numa série dedicada às analogias históricas. Poderiam surgir inúmeros conflitos de interesses e objetivos políticos na condução do Governo de Charleston e na aliança com os Volm, e, assim, enfraquecer os heróis, se inspirando em analogias históricas a processos de independência e guerras, no geral. Não era necessário simplesmente acabar com toda aquela resistência e começar de novo o enredo do seriado, caso houvesse uma abordagem crítica da História.

Para nós, o historiador é o cara da política. É o professor comuno-lulo-petista-aborto-gayzista, que enaltece greves e revoluções, mas que critica e analisa as coisas (assim como os professores de geografia e sociologia, justiça seja feita, seus gayzistas); porra, não seria difícil para gente arrumar intrigas políticas. Pelo contrário, seria mais complicado fortalecer os mocinhos liderados por um Tomás Canteiro, o professor de história da rede estadual, delegado sindical da APEOESP, protagonista, após ele brigar com todos seus aliados.

Já nos EUA, o historiador é o cara do preto ou branco, é ou não é. Que é capaz de afirmar que tal objeto é de tal época (como uma espécie de eternos especialistas do Trato Feito) ou, normalmente, é o fissurado em fatos e especificações militares, onde por natureza as coisas são brancas ou pretas, inimigas ou amigas. Alguém se lembra que Jack Ryan, dos inúmeros filmes, romances, games de Tom Clancy era historiador acadêmico? Em caçada ao Outubro Vermelho ele entra no enredo por ter feito pesquisas históricas sobre sistemas de propulsão de navios militares. Não faria o menor sentido um mestrado ou doutorado assim em História.

Que no fundo é o papel de professor de história de Tom Mason, lembrar de algumas batalhas da revolução americana e fazer os discursos capengas. Papel o qual se esgota rapidamente, são poucos os momentos que os personagens param para escutar suas analogias históricas – provavelmente, livres de ficar lembrando de grandes homens e eventos, tinham mais capacidade crítica para perceberam antes que ele que as duas situações, a Independência Americana e a Invasão dos Espheni, não tinham absolutamente nada a ver.


Um PS de mais um exemplo:

Em Jornada nas Estrelas; no célebre A Semente do Espaço, em que nossos protagonistas enfrentam Khan, a historiadora da nave também é convocada para a Missão. Ela está lá em seus alojamentos bela e tranquila, pintando quadros, com esculturas da antiguidade clássicas até ser chamada; sua função inicial é tentar identificar e autenticar a época da Botany Bay. E posteriormente seria algo como dar consultoria de quem seriam aqueles indivíduos e seu líder e como recebê-los bem. Sem tentar revelar muito sobre o enredo, caso alguém ainda não conhece esta obra, ela se perde em seu próprio objeto de estudo.

Já no não-tão-famoso O Lamento por Adônis, a Enterprise é capturada por uma entidade espacial que se apresenta como um deus grego. Integrando a equipe de exploração temos uma antropóloga, especialista em costumes da antiguidade, para tentar compreender, e conversar em seus termos, aquele ser estranho. Apesar de algum ou outro percalço, sua habilidade em entender como aquele ser pensa faz com que ela se liberte da sedução de ver seu objeto de estudo vivo e seja capaz de ajudar nossos protagonistas escaparem daquela situação.

Mesmo sendo um objeto de estudo do passado, o papel de compreender e conversar foi dado a uma antropóloga. De fato a antropologia daria conta, mas no contexto das humanidades na América Latina e Europa, um historiador também poderia compor essa away team; porque nosso olhar aqui é crítico e pode ser também de intervenção, diferentemente do olhar dos americanos, que seria mais “técnico” e “observador” na falta de melhores expressões. Caso houvesse um historiador também envolvido, ele no máximo tentaria identificar se Adônis de fato teria sido um ser que viveu na antiguidade terrestre através das construções do local, suas roupas e coisas do tipo.

Aqui se esperaria de nós tanto tentar confirmar a versão de Adônis como tentar conversar nos termos dele (e tentar pegá-lo no pulo).


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Publicado por Lucas Palma

Paulistano, desde que me lembro por gente fascinado pelas possibilidades do futuro, em games, filmes e seriados, herança paterna e materna. Para surpresa geral, ao final da juventude descobri fascínio também justamente pelo oposto, me graduando e mestrando em História, pela Universidade Federal de São Paulo. Sou autor de Palavras de Revolução e Guerra: Discursos da Imprensa Paulista em 1932.

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