Sociedade Paliativa

Sociedade Paliativa: a dor hoje – Byung-Chul Han

Tradução: Lucas Machado – Editora Vozes

Ano de lançamento: 2020 – Minha Edição: 2021 – 115 páginas


Ao entrar em qualquer igreja católica você encontrará, adornando toda a nave principal, imagens da Via Crucis, a jornada de Cristo em caminho a sua crucificação. Carregando muito significado para os católicos, representa a martirização de Jesus, a dor que ele sofreu pela humanidade. Durante quase dois milênios, para a sociedade ocidental a dor era algo central, considerada venerável e nobre.

A partir do que Hobsbawm chama de dupla revolução (a Revolução Francesa e a Revolução Industrial) esse ideal medieval de se entregar a dor começa a mudar de significado, mas ainda é central para a humanidade. A dor passa a ser disciplinada – há locais e momentos para sentir, sofrer ou aplicar a dor – e seu símbolo é heroico – o sujeito sente muito a dor, mas a supera e mantém seu caminho.

De acordo com o filósofo coreano radicado na Alemanha, Byung-Chul Han, na contemporaneidade nossa relação com a dor mudou completamente – agora a humanidade não quer nem mais ouvir falar em nenhum tipo de dor.

Vivemos em uma Sociedade dominada por uma ideologia hedonista (dedicada ao prazer como o fim de tudo que realizamos). O esforço supremo do sujeito deve ser feito para evitar a dor, seja ela física, moral ou psicológica. Da criação dos pais para os filhos, do ambiente de trabalho, ou da carreira profissional, nas religiões ou na política: as rupturas e confrontos devem ser evitados.

As 14 estações da Via Sacra, dispostas em todas igrejas católicas.

Se para a moral católica, você deve sofrer porque sim, porque fomos condenados a isso para herdar o reino dos céus assim como Jesus o fez por nós, para os espíritas todo sofrimento é passageiro e tem uma explicação prévia ou posterior e tudo se encaixa, ou para os neopentecostais, no polo completamente oposto, os poderes divinos estão aí para te fazer feliz, completo e rico. Para um bom marxista, isso não passaria de ideologia – como o catolicismo o foi – para justificar a exploração das classes.

Aí já sou eu colocando palavras na boca de Byung-Chul, pois o autor não se identifica desta forma, mas, por outro lado, sim, demonstra como a exploração se tornou ainda mais perversa que nunca. Depositando no indivíduo uma capacidade notória para a autoexploração. Se você está sofrendo ou com dor, a culpa é sua!

A liberdade não é reprimida, mas explorada“; o autor aponta. Seja feliz, seja foda, administre o seu tempo, e o que mais você puder lembrar de títulos de auto ajuda. Só depende de você esquecer essa dor; você não pode se deixar contaminar por ela; não pode senti-la; a depressão é uma questão de mindset! Se você não tem tempo para ser feliz, é uma questão de você organizar seu dia; se você não gosta da sua carreira, faça outra. Evite a dor e seja feliz!

Essa propaganda é passada não somente “diretamente”, através desses exemplos ligados ao mundo econômico e do trabalho, mas também na arte. Ela é uma commodity hoje: feita para não chocar, não despertar sentimentos negativos e nem causar impacto profundo no espectador. E, nas redes sociais, um mecanismo baseado em likes como forma de basear uma algoritmo que sempre te coloque numa bolha de conforto ao trazer mais coisas que você gosta, ao mesmo tempo que supre a carência emocional: as redes são um marco último onde as pessoas estão abrindo mão voluntariamente de sua liberdade, ao depositar seus dados e informações pessoais em troca de conforto.

O autor não tem meias palavras e não foge da materialidade, sempre nomeia diretamente o responsável e os motivos dessa transformação: o neoliberalismo. Mas, por outro lado, ele escorrega feio ao conectar muitos dos seus pontos com o contexto da pandemia – o livro foi escrito originalmente durante seu pico na Europa – como se a busca por proteção contra o COVID, através do isolamento social, tenha sido mais uma forma de fuga da dor. Não que não tenha sido isso, mas o que ele queria colocar em contraposição aqui, a humanidade deliberadamente buscar a dor e a morte?

Nesse sentido, há alguns saltos ousados aqui e ali nas associações que ele faz entre a relação humana com a dor e determinadas mazelas sociais – estranhamento sentido também nesta resenha, provavelmente, por quem a esteja lendo – que incomodam. Mas isso é um efeito colateral já que é uma obra de bolso, pensada para ser lida rapidamente e “apenas” uma ponta das longas e diversas reflexões do autor, que aparecem em outras livros de Han, como Sociedade do Cansaço e Sociedade da Transparência – que também possuem edição brasileira.

A consequência suprema da luta pela sobrevivência e pela fuga da dor, o filósofo adverte, é uma desumanização da humanidade. A partir do momento que o sujeito passa a desconhecer a dor (e, no limite, a morte), nós perdemos também a empatia pelos iguais, já que muitas vezes esse sentimento se traduz em poupar o outro da dor – e para isso você precisa saber que ela existe – e muitas vezes estar disposto a sofrer você mesmo essa dor em troca – coisa que está cada vez mais raro na sociedade neoliberal.

Muito Bom (4/5)

Um exame curto e denso, mas sem deixar de ser acessível, da relação da sociedade humana com a dor na contemporaneidade e suas implicações. Ao mesmo tempo, se o formato de bolso é rápido e fácil, também acaba proporcionando certos “saltos” na argumentação que causam incômodo. Sem meias palavras vai fundo na questão, o que também gera vários momentos de discordância, mas sem deixar de ser uma rica e impactante reflexão.

Tatuagens, Piercings e Esportes Radicais – para o autor, a súbita popularidade que essas atividades e práticas culturais ganharam no século XXI, anteriormente associadas a sujeitos marginalizados da sociedade mas hoje presente até em mesmo em sacerdotes religiosos, tem uma explicação muito concisa: é a humanidade tentando se reencontrar com a dor.

Fim da História e Fim da Revolução – Ao longo do livro o autor aponta diversas vezes que pode chegar nesse debate; já que a sociedade neoliberal, em sua busca frenética para evitar o confronto, vai aperfeiçoando a exploração: com o trabalho em forma a auto-exploração, o homem bombardeado com arte e relações sociais hedonistas, seu desejo por mudança será cada vez menor.

Todavia, ele aponta que o fim da história não tem absolutamente nada a ver com o apontado por Fukuyama ou demais autores do período. O confronto (a luta de classes, para marxistas) não chega ao fim com o aperfeiçoamento supremo da democracia liberal burguesia, que poderia resolver todos os dilemas sem necessitar de rupturas; e sim com o avanço tão predatório do capital que torna, a partir do consumo, o conforto (físico, material e psicológico) um valor mais elevado que a liberdade ou a democracia.

Isso toma forma, novamente, de maneira explícita nas Redes Sociais. “A comunicação sem limites […] inverte-se como vigilância total“, afirma. Se no século XIX, a população mundial resistia com revoltas a realização de censos, por exemplo (no Brasil, isso ocorreu como a Revolta do Ronco da Abelha), atualmente os usuários da internet se expõe e fornecem seus dados – que são comercializados posteriormente, devemos nos lembrar – sem nenhuma resistência de calibre igual. De maneira que, por exemplo, qualquer articulação que tenda a ruptura seria facilmente neutralizada.


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Publicado por Lucas Palma

Paulistano, desde que me lembro por gente fascinado pelas possibilidades do futuro, em games, filmes e seriados, herança paterna e materna. Para surpresa geral, ao final da juventude descobri fascínio também justamente pelo oposto, me graduando e mestrando em História, pela Universidade Federal de São Paulo. Sou autor de Palavras de Revolução e Guerra: Discursos da Imprensa Paulista em 1932.

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